Por Victor Arnaud
O ano de 2024 foi marcado por uma mudança de paradigma: a regulação da Inteligência Artificial deixou de ser uma discussão teórica e passou a ser uma realidade concreta em diferentes partes do mundo. A União Europeia aprovou o AI Act, o primeiro marco legal abrangente do Ocidente para tecnologias de IA. Os Estados Unidos publicaram uma ordem executiva com diretrizes rígidas para segurança, transparência e uso ético. A China intensificou sua abordagem de regulação focada no controle de algoritmos sensíveis. Outros países, como Canadá, Reino Unido, Japão e Coreia do Sul, também avançam com propostas próprias. Nesse cenário, uma questão se impõe: qual deve ser a resposta do Brasil?
O país tem a oportunidade, e a responsabilidade, de construir uma legislação que combine soberania, inovação e segurança. Mas, para isso, precisa ir além da discussão política e adotar critérios técnicos claros, alinhados com o que há de mais avançado globalmente. A regulação da IA, neste momento, não é mais sobre “impedir abusos futuros”, mas sim sobre lidar com impactos que já estão ocorrendo em escala, de forma muitas vezes invisível para os usuários finais e ainda sem parâmetros jurídicos sólidos.
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Uma legislação eficaz sobre IA precisa partir do reconhecimento de que a tecnologia não é neutra. Ela carrega as escolhas de quem a desenvolve, os dados que a alimentam e os contextos nos quais é aplicada. Por isso, qualquer tentativa séria de regulação deve considerar cinco fundamentos essenciais, que têm se mostrado centrais nos debates mais avançados do mundo e que merecem atenção no contexto brasileiro.
1. O primeiro ponto é o princípio da proporcionalidade. Nem toda IA representa o mesmo nível de risco. Um sistema que sugere qual série assistir tem impacto bem diferente de um algoritmo que aprova um financiamento, classifica pacientes ou auxilia em decisões judiciais. Reguladores precisam estabelecer categorias de risco e aplicar exigências compatíveis com o impacto potencial de cada tipo de aplicação. Esse modelo, já adotado no AI Act europeu, evita tanto o excesso de burocracia quanto o vácuo regulatório.
2. A seguir, vem a transparência. Usuários e empresas precisam saber quando estão interagindo com uma IA e, principalmente, entender os critérios de decisões automatizadas. Isso não implica, necessariamente, revelar código-fonte ou fórmulas matemáticas, mas garantir a chamada explicabilidade algorítmica, ou seja, o direito de compreender de forma inteligível porque uma decisão foi tomada, ainda que de maneira técnica ou probabilística.
3. Outro pilar é a qualidade dos dados. Modelos de IA são, essencialmente, reflexos do conjunto de dados que os alimentam. Quando esses dados carregam distorções raciais, socioeconômicas, regionais, etc, a IA reproduz e potencializa essas distorções. Isso pode ser desastroso em sistemas usados para concessão de crédito, triagem de currículos ou análises criminais. Portanto, uma legislação consistente deve prever mecanismos de auditoria, validação e correção dos dados, além de políticas de consentimento e privacidade sólidas, respeitando legislações como a LGPD e as convenções internacionais.
4. A supervisão humana também é indispensável. Sistemas de IA não podem operar de forma autônoma em decisões que afetam diretamente a vida das pessoas, sem que haja possibilidade de revisão, contestação ou intervenção humana. Essa prerrogativa, chamada de human-in-the-loop, precisa estar garantida por lei em aplicações de alto impacto, sob pena de transformarmos decisões complexas e morais em operações puramente matemáticas. Além disso, é fundamental definir com clareza os mecanismos de responsabilização legal. Quem responde em caso de erro grave ou dano causado por um sistema de IA? Desenvolvedores, fornecedores e operadores precisam ter papéis e obrigações bem delimitadas. Sem esse arcabouço, abre-se margem para disputas jurídicas intermináveis e, pior, para a diluição da responsabilidade. A responsabilização é parte central do debate internacional e não pode ser negligenciada em nenhum marco regulatório sério.
5. Por fim, é fundamental que o Brasil estabeleça uma regulação que seja ao mesmo tempo soberana e conectada com o mundo. A IA é uma tecnologia global e, como tal, exige interoperabilidade normativa, sobretudo para empresas que operam em múltiplas jurisdições. Isso não significa renunciar a autonomia regulatória, mas construir mecanismos que permitam diálogo técnico com padrões internacionais, especialmente com mercados com os quais o Brasil se relaciona comercialmente.
O desafio não é trivial. Regras demais podem inibir a inovação. Regras de menos podem comprometer direitos fundamentais e segurança. O equilíbrio está na construção de um marco legal que seja técnico, escalável e ancorado em princípios éticos. Não se trata de criar obstáculos, mas de fornecer uma base segura para o desenvolvimento responsável da tecnologia.
Ao lado disso, cabe também um olhar interno: empresas e instituições públicas precisarão estruturar mecanismos próprios de governança de IA. Comitês de ética, processos de auditoria contínua, monitoramento de riscos e práticas de desenvolvimento responsável não serão apenas boas práticas, serão exigências do mercado e, possivelmente, da própria legislação. O alinhamento entre regras externas e condutas internas será decisivo para consolidar confiança no uso da IA.
O avanço da IA é inevitável. A escolha que temos é entre assistir a essa transformação passivamente ou construir, desde já, os fundamentos que garantirão que ela ocorra de forma segura, justa e transparente. O Brasil ainda tem tempo de liderar esse processo na América Latina, mas não pode mais adiar a tarefa.
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