Há quem ame e há quem odeie, filmes de terror conseguem transmitir aos telespectadores inúmeras sensações em seus pouco mais de 90 minutos de telas. Entre elas medo, aflição, angústia, nojo, alívio e para muitos é uma delícia experimentar tudo isso.
Quando falamos sobre filmes de terror brasileiros, um dos personagens mais marcantes na memória de todos é o famoso Zé do Caixão, interpretado pelo cineasta José Mojica Marins e considerado o eterno pai do terror brasileiro.
Figura que se tornou referência para muitos jovens que desejam seguir fazendo filmes de horror para o cinema. Mas para seguir na profissão e acreditando ser possível adquirir todo sucesso e reconhecimento, tanto quanto as produções de fora fazem no Brasil, é preciso de incentivos.
E isso faz com que jovens cineastas venham apostando e explorando o terror de todas as maneiras como: psicológico, slasher, trash, gore, social, thriller, terror sobrenatural e o found footage (subgênero pouco conhecido e feito geralmente em filmes de terror independentes que contam diversas histórias).
Daniela Duarte, bacharel em cinema e curadoria dos coletivos de cineclubes “Diabólicas” e “Comeram Minha Pipoca” conta que o momento, em sua opinião, é de crescimento no audiovisual para a produção de filmes de terror no Ceará, e que o preconceito sempre existiu.
Para ela, o gênero costuma abordar temas que tocam em feridas que não costumamos discutir ou pensar e se houvesse mais orçamentos, uma produção de terror ou fantasia poderia apresentar um resultado diferente.
“Se houvesse mais produções e ajuda de custo para quem produz os filmes gênero terror, ofertas de mais cursos gratuitos de roteiro para terror, direção de fotografia para o gênero ou cursos de maquiagem para efeito visual e entre outros, ter recursos para quem trabalha ou estuda essa área, com certeza sairiam muitas obras boas e quem sabe até séries”, pontua.
E ressalta que filmes do gênero são mais difíceis de financiar: “Pois acabam dando mais visibilidade a filmes considerados de ‘arte’, porém todos filmes são artísticos se for parar para analisar. Todos têm o seu determinado estilo de contar história, seja fantástica, de horror ou drama“.
Cenário Cearense do Cinema de Terror
No Ceará, a terceira edição do Sinistro Fest – Festival Internacional de Cinema Fantástico acontece justamente para dar visibilidade a trabalhos independentes de jovens e oferecer noções práticas de escrita de roteiro e produção de um curta-metragem voltado para o gênero.
O evento acontece de 7 a 13 de outubro, no Cineteatro São Luiz, e o público assistirá às estreias mundiais, latino-americanas, nacionais e locais do cinema fantástico, que vão da fantasia ao suspense, passando pela ficção científica e pelo terror.
Estreando como diretora de cinema com o filme “Quando Meus Lábios Sagrados Disseram Palavras Secretas”, Ariza Torquato fala que as produções de audiovisuais cearenses se encontram com uma reputação “excelente, originais e qualificadas”, mas pontua a importância de existir políticas públicas de investimentos para o setor.
“Por muito tempo nossas boas ideias e bons profissionais foram creditados ao Sudeste, mas acredito que isso está mudando. O cinema nordestino é um dos mais fortes do País e isso está sendo reconhecido. O que nos falta é a melhora de políticas públicas para a realização, investimento financeiro e uma boa distribuição”, relata.
A cearense dirige o filme ao lado de Briar e Kaye Djamillá, em um enredo que apresenta Maya, que após a morte da mãe, entra em um processo depressivo. Na tentativa de se curar, resolve passar um tempo na casa da avó, Antônia. Ao chegar lá, é cercada pelos hábitos e símbolos da religião da avó, percebendo que algo estranho permeia a família.
Para ela, produções de terror feitas com mais orçamentos poderiam apresentar outro resultado, já que o gênero naturalmente demanda uma boa direção de arte e efeitos especiais. E cita que a maior dificuldade em gravar o filme foi a falta de verba e para “enxugar os custos” todos da equipe de produção ficaram hospedados na mesma casa na qual as gravações foram feitas em Maranguape.
“Sem uma boa qualidade e investimento nessas áreas, o filme pode soar ‘tosco’ e comprometer todo o trabalho. Além de que, quando falamos em orçamento temos que considerar como o filme pode se vender também para alcançar as pessoas”, declara a diretora estreante.
Ela ainda afirma que o grande público brasileiro passou muito tempo se interessando por cinema de comédia e violência, mas que isso está mudando e se expandindo. Fazendo com que cada vez mais pessoas se interessem em entender o que está sendo realizado no terror brasileiro.
“Cito o público porque o filme nacional tem uma concorrência injusta com os filmes internacionais, e sem a valorização do nosso cinema a verba disponibilizada continuará defasada. O investimento e a distribuição são grandes problemas do cinema nacional”, opina.
Já a diretora do filme “Crayon”, Juno Martins, que também faz parte do Sinistro Fest, destaca a importância de existir mais representatividade LGBTQIA em produções de horror cearense.
“Discutir racismo, homofobia e feminicídio em filmes de terror é super importante. O gênero dá uma sacudida nas questões sociais de forma impactante, fazendo a gente refletir. Além disso, traz à tona vozes que costumam ser ignoradas”, afirma.
“Crayon” conta a história de Mel, uma artista trans que usa seus desenhos como refúgio. Quando seu autorretrato ganha vida, a protagonista passa a ser perseguida por ele. “Produzir terror ou fantasia aqui no ceará é ser muito confiante no seu trabalho, porque as pessoas não acreditam muitas vezes no seu potencial e você tem que provar que seu trabalho é bom”, afirma Juno ao ser questionada sobre as principais dificuldades em trabalhar com gênero no Estado.
E cita Zé do Caixão como referência no terror. “Zé do caixão é patrimônio cultural brasileiro, ter feito o que ele fez no tempo em que viveu dá esse gás de acreditar no audiovisual atualmente, mesmo com tantas barreiras. E os personagens icônicos muito bem escritos são reflexo desse trabalho que é lembrado até hoje”, pontua a diretora do filme “Crayon”.
Entre o trash, horror e fantasia
Com três curtas já produzidos, “Cinemão”, “Janaina Overdrive” e “Pop Ritual”, o cineasta cearense Mozart Freire conta que hoje existe um circuito mais consolidado para produção de filmes de terror no Ceará e no Brasil.
“Falo assim no sentido de termos realizadores há mais tempo nesse cenário que sempre produzem dentro do terror como também aqueles iniciantes que se destacam em festivais específicos para esse gênero. Muitos realizadores do gênero terror produzem suas obras de maneira muito independente, com baixíssimo orçamento e isso vira a própria estética do filme. Vez ou outra esses filmes se destacam nos festivais e seus realizadores começam a acumular capital cultural para se submeter a um edital”, conta.
Sua paixão pelo gênero começou já na adolescência quando passou a escutar heavy metal, thrash metal e assistir a filmes de terror dos anos de 1980. E em 2012, após começar a frequentar um cineclube de Fortaleza chamado “Filmes Malditos da Meia-noite” que exibia filmes B (de baixo orçamento), trash e terror, isso fez com que decidisse estudar cinema.
“Comecei pelo curso de audiovisual da casa amarela da UFC, em seguida fiz o curso da Vila das artes e depois participei do laboratório de roteiro do Porto Iracema. Então, dentro dessa minha jornada nesses cursos de cinema de Fortaleza, eu sempre pensei no cinema do gênero terror, junto com minhas referências de heavy metal e HQs. Até que um dia o pote encheu demais, transbordou e fiz meu primeiro curta-metragem”, relembra.
Seus dois primeiros filmes abordam histórias de ficção científica e cinemas eróticos em Fortaleza, foi somente com o longa “Pop Ritual” que passou a explorar o mundo do horror. Em uma produção que mistura história de vampiro, exorcismo e erotismo.
O filme tem influência forte de um RPG que jogou chamado “Vampiro A Máscara”, em que era um caçador de vampiros, mas também traz referências do filme americano “Nosferatu – O vampiro da noite”, do diretor Werner Herzog e de alguns festivais góticos que acontecem em Fortaleza.
Mozart também conta que a crença do Padre Cícero de entregar uma hóstia na boca da beata Maria de Araújo e logo após virar sangue, na cidade do Crato, em 1989, foi uma referência religiosa que queria abordar no filme.
“Eu queria trabalhar de alguma forma isso em algum curta meu em um sentido de profanar essa imagem do imaginário religioso do Ceará. A maioria das bandas de heavy metal tem uma música criticando a igreja. Talvez o ‘Pop Ritual’ tenha sido minha música de metal extremo que cantei com voz gutural através das imagens”, explica.
Cenário Nacional do Cinema de terror
O crítico e pesquisador Carlos Primati destaca o crescimento de produções nacionais nos últimos dez anos no País, “mesmo com a pandemia, somada ao abandono do audiovisual por parte dos órgãos governamentais”. Para ele, o cenário ainda se desenha como promissor para o futuro próximo, mas é necessário que esse processo não seja interrompido.
Segundo o crítico, o que é considerado no Brasil uma produção de alto orçamento seria equivalente a um filme de orçamento muito baixo nos padrões de Hollywood, mas que obviamente trabalhar com mais dinheiro pode propiciar melhores valores de produção como: contratação de técnicos mais experientes, locações, efeitos especiais, cachês mais dignos e elenco estelar.
“Mas um orçamento muito grande para horror pode comprometer a integridade do filme, é normal no cinema americano os filmes do gênero com orçamentos maiores serem mais comedidos em termos de violência e sangue, para alcançarem um público mais amplo, pois nem todo mundo tem interesse por filmes mais extremos. Desta maneira o filme se adequa a um público mais genérico e perde parte de sua autenticidade”, destaca.
Sobre projetos de terror serem mais difíceis de conseguir financiamento, ele revela que embora exista uma quantidade significativa de longas-metragens de horror nacionais financiados por leis de incentivo, alguns cineastas evitam usar termos como “horror” e “terror” quando submetem suas propostas com receio de serem recusados.
“Ouço dizer também que há uma tendência atual em aprovar menos projetos que lidam com esse gênero, o que pessoalmente considero um equívoco, porque enxergo o horror essencialmente como um tipo de narrativa em que falamos do oprimido, não do opressor. Portanto, é também uma potente ferramenta para contar histórias de injustiças, traumas e cicatrizes que funcionam como reflexão e catarse”, declara.
Sinistro Fest
Quando: de 7 a 13 de outubro
Onde: Cineteatro São Luiz -Rua Major Facundo – Centro – Fortaleza
Mais informações: @sinistrofest
Gratuito