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O uso da inteligência artificial no âmbito da arbitragem doméstica

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O uso da inteligência artificial vem tendo crescimento exponencial em diversas áreas do conhecimento, o que tem aumentado o debate sobre até que ponto a IA pode vir a substituir a atuação humana em algumas atividades.

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Reprodução

OAB Nacional aprovou recomendações para uso de inteligência artificial regenerativa na prática da advocacia

Um dos campos em que o uso da IA vem sendo discutido é o jurídico e, dentro dele, no âmbito da arbitragem. Seja para a análise de um grande volume de documentos, para a gestão dos procedimentos arbitrais ou até mesmo para a escolha dos árbitros o uso da IA vem sendo debatido. Questão mais sensível é a substituição dos árbitros humanos por “árbitros-robôs”, ou seja, a IA seria utilizada para proferir uma “decisão”, substituindo a atuação dos árbitros.

Logo de início, no entanto, alguns entraves surgem e devem ser examinados com cautela antes de que o uso da IA se dissemine. Com a reflexão aqui proposta não se pretende preconizar o retrocesso e afastar, de todo, os avanços que a IA pode representar na arbitragem, mas, sim, verificar os limites de sua utilização a fim de se garantir a legalidade e eficácia do processo arbitral.

O primeiro problema que surge decorre da questão tecnológica propriamente dita. No estágio atual, a IA ainda comete erros objetivos, apresenta respostas que não têm embasamento jurídico, chega ao ponto de criar artigos de lei, textos doutrinários e até mesmo precedentes que não existem [1]. Nesse contexto, se a ideia for fazer uma pesquisa jurídica, seja para embasar uma manifestação a ser apresentada pelos advogados em uma arbitragem, seja para subsidiar uma decisão tomada pelos árbitros, ao menos por enquanto as respostas fornecidas pela IA devem ser cuidadosamente confirmadas pelo método tradicional de verificação da fonte, conferindo o texto da lei, da doutrina ou da jurisprudência, conforme o caso.

Outra questão importante a ser sopesada é o impacto da utilização da IA na confidencialidade da grande maioria dos processos arbitrais [2]. Até que ponto o fato de advogados ou árbitros recorrerem à inteligência artificial para embasar suas respectivas manifestações e decisões poderia representar uma quebra da confidencialidade?  A submissão de determinadas questões concretas em discussão na arbitragem à IA, com o consequente “treinamento” do algoritmo, gerando possível replicação de um padrão em casos semelhantes, representaria quebra da confidencialidade de um determinado procedimento arbitral?

A influência do algoritmo na arbitragem é outra questão a ser sopesada [3]. Justamente uma das vantagens da arbitragem é o julgamento de questões complexas e sofisticadas, na grande maioria das vezes envolvendo cifras relevantes, por árbitros especialistas na matéria em discussão, que vão se debruçar sobre as especificidades do caso concreto, proferindo uma decisão tailor made. Na medida em que a IA seja utilizada para substituir o árbitro e proferir decisões, o uso do algoritmo poderia retirar, ou ao menos prejudicar, características que tornam a arbitragem um meio atrativo para a solução de disputas complexas e diferenciadas justamente porque passaria a ser utilizado um padrão criado pelo algoritmo, em detrimento da análise individual e específica do caso concreto [4].

O papel do algoritmo também pode vir a ser questionado quando a IA é utilizada pelas partes para a escolha dos árbitros, pois isso poderia criar a tendência de sempre serem escolhidos os mesmos árbitros, que têm ampla atuação, que já são conhecidos, dificultando que novos profissionais, igualmente qualificados, pudessem vir a ser escolhidos para exercer essa função.

Uma característica básica do Direito, que todos os estudantes aprendem nos primeiros dias de aula, é que não se trata de uma ciência objetiva. O Direito depende da interpretação, que lhe é conferida pelo intérprete em função do conjunto de elementos específicos da situação objeto da lide. A regra geral é que no Direito não devem ser aplicadas fórmulas pré-prontas, devendo a norma jurídica ser interpretada, no momento de sua aplicação, conforme a hipótese concreta [5].

Segundo Eros Grau, o Direito é como uma partitura musical. Da mesma forma como a partitura precisa ser interpretada pelos músicos que a reproduzem com seus instrumentos, o Direito não é apenas um conjunto de normas a serem seguidas rigidamente, mas um sistema que precisa ser interpretado e aplicado de maneira dinâmica [6].

Essa interpretação varia ao longo do tempo e conforme o lugar em que o Direito é aplicado, em função de aspectos culturais, sociológicos, morais, geográficos. O que no passado poderia ser considerado um comportamento conforme a boa-fé, pode não mais ser atualmente, justamente em função do caráter dinâmico e subjetivo do Direito [7].

Assim, partindo do pressuposto de que a aplicação do Direito envolve considerações morais e políticas, que não são passíveis de conhecimento objetivo, a substituição da interpretação e aplicação do Direito pelo uso da inteligência artificial na prolação de decisões submetidas à arbitragem seria contrária à própria essência da ciência jurídica, que só se completa com a sua aplicação pelo operador do Direito, no caso aqui examinado, pelo árbitro.

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Dessa forma, como o Direito não é uma ciência exata, a substituição da interpretação e aplicação da norma jurídica que deve ser feita pelo árbitro quando um caso lhe é submetido pela atuação de um “árbitro-robô”, que utilizaria a inteligência artificial para proferir uma “decisão” conforme padrões pré-estabelecidos e selecionados pelo algoritmo, representaria completa desvirtuação da ciência jurídica.

Pessoa humana

Mais um importante entrave ao uso da inteligência artificial como um substituto da atuação do árbitro decorre da própria qualificação que lhe é dada pela Lei de Arbitragem, segundo a qual o árbitro deve ser pessoa capaz e que tenha a confiança das partes [8]. São requisitos cumulativos: a capacidade do árbitro enquanto sujeito de direitos e obrigações [9] e o fato de gozar da confiança das partes. A confiança tem duplo aspecto, abrangendo a probidade e retidão do árbitro e, também, o conhecimento técnico que ele detém para julgar o caso que lhe é submetido [10].

Ao definir que estão “impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil”, o artigo 14 da Lei de Arbitragem deixa claro que o árbitro é pessoa humana, que não pode ter determinado tipo de relação nem com as partes, nem com o próprio litígio que deverá julgar, tendo, nesse contexto, os mesmos deveres de imparcialidade e independência do juiz togado.

Os artigos 15 [11] e 20 [12] da Lei de Arbitragem garantem às partes o direito de impugnar os árbitros, estabelecendo que devem ser arguidas questões de competência, suspeição ou impedimento do árbitro na primeira oportunidade que tiverem para se manifestar na arbitragem. Fica claro que as questões que podem ser arguidas na impugnação são próprias do árbitro humano, e não de um método de solução de disputas que utilize a inteligência artificial.

O artigo 16 da Lei de Arbitragem [13] trata da substituição do árbitro em casos de não aceitação, quando é nomeado, ou de falecimento no curso da arbitragem. Mais dois atributos que somente o árbitro humano pode ter: recusar uma indicação e falecer.

No artigo 17 [14] a Lei de Arbitragem equipara o árbitro ao funcionário público para os efeitos da lei penal, ou seja, o árbitro está sujeito às mesmas penalidades a que está sujeito o funcionário público no exercício de suas funções. Certamente a IA não pode ser sujeito passivo de ação penal.

Por fim, no artigo 18 a Lei de Arbitragem equipara o árbitro ao juiz togado, estabelecendo que “o árbitro é juiz de fato e de direito”, deixando claro que, nos termos da legislação em vigor, o árbitro não pode ser substituído por sistemas de inteligência artificial.

Paralelamente aos requisitos que deve ter o árbitro tais quais estabelecidos pela Lei de Arbitragem, a sentença arbitral não é uma decisão qualquer, mas uma decisão qualificada, equiparada à sentença judicial e, quando condenatória, constitui título executivo. [15] A “decisão” proveniente de um sistema de inteligência artificial não é proferida por árbitro capaz, que tem a confiança das partes e, portanto, não pode ser equiparada a uma sentença judicial para os fins e efeitos da Lei de Arbitragem, não sendo passível de execução.

Ou seja, ainda que as partes possam, em tese, decidir submeter suas disputas a método alternativo de solução de disputas, como poderia ser considerado o uso de sistema de inteligência artificial em substituição ao árbitro, a “decisão” daí proveniente não será uma sentença arbitral, não será qualificada como título executivo, nem terá eficácia jurídica.

 


[1] CRISTOFARO, Pedro Paulo Salles. Testando a inteligência artificial numa aula de Direito. Estadão, 11/02/2025. Disponível em:.https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/testando-a-inteligencia-artificial-numa-aula-de-direito/?srsltid=AfmBOori0bFNE9CAa0rGn_83_m7SbFxB60E2KCvfBRYrUM7dz1mASI07. Acesso em 26/03/2025.

[2] Ainda que a confidencialidade não seja característica intrínseca da arbitragem, as partes podem estipular a confidencialidade do procedimento no termo de arbitragem ou no contrato, podendo, também, a confidencialidade ser prevista nos regulamentos das câmaras arbitrais. De todo modo, a discrição é uma característica do árbitro exigida no art. 13, parágrafo sexto, da Lei nº 9.307/1996 – Lei de Arbitragem.

[3] “Por outro lado, os algoritmos utilizados nas ferramentas de inteligência artificial são obscuros para a maior parte da população – algumas vezes até para seus programadores – o que os torna, de certa forma, inatacáveis. Em função disso, a atribuição de função decisória aos sistemas de inteligência artificial torna-se especialmente problemática no âmbito do Direito.”                                                                                                                                                                          NUNES, Dierle; MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho. Inteligência artificial e direito processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. Revista de Processo, vol. 285, 2018, pp. 421-447.

[4]In any case, the challenges of the use of AI in decision-making in arbitration merit careful consideration. An inherent limitation stems from the fact that AI tools rely on statistical data, thus lacking the capacity for legal reasoning and rendering a decision based on the individual circumstances. The decision is not based on reasonableness but on statistical likelihood. In other words, a decision rendered by AI is simply the most likely outcome. This calls into question the extent to which AI can accommodate the specific circumstances of an individual case. The reliance on historical data may also restrict the evolution of law, as new legal arguments will rarely succeed.” HAESLER, Janine; ISLER, Tim. Navigating the Main Impacts of Artificial Intelligence in International Arbitration: Insights from the ICC YAAF Workshop. Kluwer Arbitration Blog, March 17, 2024. Disponível em: https://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2024/03/17/navigating-the-main-impacts-of-artificial-intelligence-in-international-arbitration-insights-from-the-icc-yaaf-workshop/. Acesso em 26/03/2025.

[5] “A aplicação do Direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano.” MAXIMILIANO, Carlos; MASCARO, Alysson. Hermenêutica e aplicação do direito. (Fora de série) – 23ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 22.

[6] “Entre a música e o Direito há, contudo, certa semelhança. Ambos são alográficos, isto é, reclamam um intérprete: o intérprete da partitura musical, de um lado; o intérprete do texto constitucional ou da lei, de outro.” GRAU, Eros. O Direito e a Música, O Globo, 13/05/2014. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/a-musica-o-direito-12465403. Acesso em 26/03/2025.

[7] “(…) esta tendencia racional para reduzir o juiz a uma funcção puramente automatica, apesar da infinita diversidade dos casos submetidos ao seu diagnostico, tem sempre e por toda a parte sossobrado ante a fecundidade persistente da prática judicial. O juiz, esse ‘ente inanimado’, de que falava Montesquieu, tem sido na realidade a alma do progresso jurídico, o artifice laborioso do direito novo contra as fórmulas caducas do direito tradicional. Esta participação do juiz na renovação do direito é, em certo grau, um phenomeno constante, podia dizer-se uma lei natural da evolução juridica: nascido da jurisprudencia, o direito vive pela jurisprudencia, e é pela jurisprudência que vemos muitas vezes o Direito evoluir sob uma legislação imóvel.”  CRUET, Jean. A vida do direito e a inutilidade das leis. Lisboa: Antiga Casa Bertrand, 1908, pp. 17-18.

[8] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem), Art. 13: “Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.”

[9] Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Art. 1º: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.” Vide art. 3º para o conceito do absolutamente incapaz e o art. 4º para a definição do relativamente incapaz.

[10] “Trata-se aqui da confiança lida em seu sentido estrito, isto é, na crença na probidade moral, na sinceridade e lealdade e, também, na competência técnica do profissional que exerce a função de árbitro.” NUNES, Thiago Marinho. A impossibilidade jurídica do árbitro-robô. Migalhas, 14/12/2021 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/356434/a-impossibilidade-juridica-do-arbitro-robo. Acesso em 26/03/2025.

[11] Lei de Arbitragem, Art. 15: “A parte interessada em arguir a recusa do árbitro apresentará, nos termos do art. 20, a respectiva exceção, diretamente ao árbitro ou ao presidente do tribunal arbitral, deduzindo suas razões e apresentando as provas pertinentes.”

[12] Lei de Arbitragem, Art. 20: “A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem.”

[13] Lei de Arbitragem, Art. 16: “Se o árbitro escusar-se antes da aceitação da nomeação, ou, após a aceitação, vier a falecer, tornar-se impossibilitado para o exercício da função, ou for recusado, assumirá seu lugar o substituto indicado no compromisso, se houver.”

[14] Lei de Arbitragem, Art. 17: “Os árbitros, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, ficam equiparados aos funcionários públicos, para os efeitos da legislação penal.”

[15] Lei de Arbitragem, Art. 31: “A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.”



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