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Operações de câmbio com stablecoins e evasão de divisas

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O crescente volume de operações com criptomoeda tem revelado o potencial da tecnologia de ser utilizada como substituta de operações de câmbio tradicionais. Esse fenômeno é perceptível, por exemplo, nas hipóteses em que há uso de criptomoeda para pagamento de obrigações internacionais, ou na compra e revenda de criptomoedas com recebimento de moeda estrangeira no exterior.

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Esse potencial torna-se ainda mais evidente no caso das stablecoins. Usamos a expressão para designar representações digitais de valor, estruturadas por padrões criptográficos, que cumprem a função de meio de troca e estão lastradas com ativos, geralmente moedas fiduciárias, como dólar [1].

Reconhecendo uma realidade em que as stablecoins já vêm sendo utilizadas de forma prática como alternativa a operações cambiais tradicionais, o Banco Central (BC), no final do ano passado, publicou a Consulta Pública nº 111/2024, apresentando ao mercado uma minuta preliminar de regulação de atividades de prestadoras de serviços de ativos virtuais (Vasps) no mercado de câmbio [2].

Enquanto aguardamos pronunciamento definitivo pelo BC, o mercado se vê rodeado de incertezas sobre o futuro regulatório das stablecoins no mercado de câmbio brasileiro.

Essa insegurança administrativa nos leva a um questionamento que constitui o objeto central do presente artigo: quais são os riscos de que operações cambiais com stablecoin sejam enquadradas como delito de evasão de divisas?

A pergunta é importante porque nem toda irregularidade cambial pressupõe a existência de um ilícito penal.

Nos propomos, assim, investigar algumas premissas positivas e negativas necessárias para afirmar que uma prática irregular de câmbio com stablecoin, mais do que uma irregularidade administrativa, possa também ser enquadrada como um delito de evasão de divisas.

O tipo penal: evasão de divisas

O delito de evasão de divisas foi concebido na década de 1980, fruto de um contexto econômico de grave crise cambial, de elevado endividamento externo e de altas do dólar provocadas pelas crises de petróleo no Oriente Médio. Naquele momento histórico, o controle do estado brasileiro sobre as divisas internacionais detidas pelo país e por seus residentes era essencial para a proteção da política econômica, justificando a criminalização de condutas que clandestinamente que reduzissem as já escassas reservas monetárias [3].

lavagem afins

Norteado por esse objetivo, a figura penal, prevista no artigo 22, da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional [4] (Lei Federal nº 7.492/1986) previu três modalidades delitivas distintas, consistentes na (1) realização clandestina de operação de câmbio, com o fim de evadir divisas (caput); (2) remessa de moedas ou divisas ao exterior em desacordo [5] com as normas administrativas (primeira parte, do parágrafo único) e (3) manutenção de depósitos no exterior sem declaração ao Banco Central [6] (segunda parte, do parágrafo único).

O tipo penal recai sobre três elementos normativos: moeda, divisas e depósitos. Portanto, para que operações cambiais praticadas com stablecoins possam ter aptidão para se configurarem como delito, é preciso entender quais são as características principais desses ativos virtuais e verificar se essas características podem ser equiparadas aos três elementos centrais do delito analisado.

Stablecoin como moedas

A definição de moeda é importante tanto para figura prevista no caput (realizar operação de câmbio [7] ilegal), quanto para a figura da primeira parte do parágrafo único (remeter moeda para o exterior).

Do ponto de vista jurídico – o único possível de servir como critério de imputação penal, por força do princípio da legalidade – moeda é aquela emitida e reconhecida por Estados soberanos, devendo reunir três condições essenciais: a) possuir curso forçado, b) curso legal e c) poder liberatório de obrigações [8].

Se no passado já houve certa indecisão no mercado sobre a natureza jurídica de criptomoedas, indagando-se se estas poderiam ser enquadradas como moedas, essa dúvida foi resolvida após a Lei 14.478/2022, conhecida como Marco Legal das Criptomoedas. No seu artigo 3º, inciso I, o legislador expressamente adotou a decisão de excluir da definição de ativos virtuais a moeda nacional e estrangeira.

Portanto, enquanto não houver legislação expressa que autorize a equiparação de stablecoins a moedas fiduciárias, pode-se afirmar que esses ativos virtuais não são moedas no sentido jurídico.

 


[1] MELLO, José Luiz Homem de ; CEITLIN, Laura Freitas; MESQUITA, Fernão. Stablecoins: uma análise jurídico-regulatória a partir de suas funcionalidades. [s.d.]. Disponível aqui.

[2] A minuta de regulamentação está disponível no site do portal Participa, do Governo Federal:  aqui.

[3] Apesar de o cenário econômico ter se alterado, o delito de evasão de divisas permaneceu vigente. Poderíamos pensar que a alteração do cenário econômico teria relegado o crime ao esquecimento dos tipos penais datados. Contudo, a realidade de operações policiais deflagradas no último ano demonstra que a evasão de divisas se tornou um instrumento de autoridades públicas para perquirir tipos penais tangenciais, muitas vezes associados, como a lavagem de dinheiro ou a sonegação fiscal. A instrumentalização do delito de evasão, com efeito, justifica a necessidade de que seja estudado e aprofundado no âmbito de operações com criptomoeda.

[4]  Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.   Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

[5] A literalidade da norma penal pressupõe a remessa de valores ao exterior sem autorização legal. Contudo, desde a criação dos Sisbacen após estabilização das reservas de divisas, as operações de câmbio sacado (remessa internacional por meio de operações autorizadas a participar do mercado de câmbio) e câmbio manual (remessa física, por meio de transporte fronteiriço) estão sujeitas a um regime declaratório e não autorizativo. Apesar de críticas a essa interpretação, a doutrina majoritária e a jurisprudência entendem hoje que a expressão deve ser interpretada como “a remessa de moeda e divisas ao exterior em desacordo com as normas administrativas vigentes”.

[6] A norma penal adota a expressão “repartição federal competente”. Essa discussão ocupou a doutrina até o começo dos anos 2000, quando parte da doutrina entendia que a autoridade competente era a Receita Federal, haja vista a ausência de previsão de regulamentação pelo BC. Contudo, no final de 2001, por meio da Resolução CMN nº 2.911 e da subsequente Circular Bacen 3.071, o BC foi investido como a entidade responsável por fiscalizar e estipular regras para declaração de bens e valores detidos no exterior.

[7] Embora a expressão “câmbio” englobe diversas operações previstas no âmbito do atual RMCCI, para fins dessa norma penal específica, a expressão deve ser compreendida como a compra e venda entre moedas fiduciárias, como a troca de reais por dólar ou vice-versa, por exemplo.

[8] Interpretação extraída a partir dos art. 21, inc. VII; art. 22, CF; Art. 3º, da Lei 8.880/94, art. 1º, da Lei 9.069/0995, art. 1º, da Lei 10.192/2001; e art. 315, Código Civil.



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