Paul McCartney quebrou um jejum de cinco anos sem uma nova composição: é sua a faixa-bônus que está na versão em vinil, ora lançada, do álbum coletivo Is this what we want?. Ele já estava disponível em versão digital. Toda a renda será destinada à Help Musicians, organização sem fins lucrativos.
Você e o planeta, que são fãs do ex-Beatle hoje com 83 anos, preparem-se: são 2’45” de ruídos comuns dos músicos se movimentando num estúdio de gravação. Ruídos que vão de gavetas abrindo e fechando, ajustes de microfones. E mais: ela não é original em relação às 12 faixas.
Ao contrário, elas também registram apenas os ruídos e chiados comuns nos estúdios. No site do projeto ficamos sabendo que mais de mil músicos uniram-se para viabilizar o álbum, “um protesto contra a proposta de mudança da lei de direitos autorais proposta pelo governo britânico”. Uma mudança ameaçadora: a proposta autoriza as empresas de inteligência artificial (IA) a usar músicas, performances e vozes de cantores sem pedir autorização aos seus legítimos criadores detentores dos direitos autorais. No manifesto, afirmam que as gravações de estúdios e espaços de shows e concerto vazios “representam o impacto que as propostas do governo provocarão sobre o sustento dos músicos”.

Paul McCartney em show realizado em São Paulo em 2024: o ex-Beatle ainda faz um show vigoroso – e ao vivo Foto: Taba Benedicto/Estadão
E que músicos. A lista inclui é um ‘who’s who’ da música internacional, pop e clássica. Entre muitos outros, lá estão Kate Bush, Annie Lennox, Damon Albarn, Billy Ocean, Ed O’ Brien, Dan Smith, The Clash, Mystery Jets, Jamiroquai, Imogen Heap, Yusuf / Cat Stevens, Riz Ahmed, Tori Amos, Hans Zimmer, James MacMillan, Max Richter, John Rutter, a família dos Kanneh-Masons, The King’s Singers, The Sixteen, Roderick Williams, Sarah Connolly, Nicky Spence, Ian Bostridge.
É um grande grito de revolta contra o modo como a IA está conseguindo até mudar a lei de direitos autorais para continuar despejando música inofensiva, sem cheiro ou gosto, mundo afora. O pior é que as majors de IA estão cooptando amigavelmente as majors da indústria da música, que até poucos anos atrás ainda posavam de defensoras dos verdadeiros criadores musicais e davam a impressão de que não se aliariam jamais às big techs e IA. Ou seja: quem deveria estar ao lado dos músicos na defesa de seus direitos mudou de lado. A grana fala mais alto, sem dúvida.
Até o ano passado, a maior queixa de músicos em geral era a da remuneração pífia das grandes plataformas de streaming. Ou seja, a questão fundamental era uma revolta dos músicos em geral contra a ditadura do streaming, a sujeição à busca da música menos criativa e o mais repetitiva possível. Algo próximo do universo sertanejo no Brasil, que só parece simplório na sua repetição do mesmo em mil e uma roupas aparentemente diferentes. É de fato uma indústria muito bem azeitada em que meia dúzia de letristas e músicos trabalham em turnos de 8 horas diárias para entregar uma dúzia de sofrências por semana.
Nos domínios das músicas ditas de invenção também funcionou assim até o ano passado. Na música de concerto, por exemplo, só lança álbum quem fatia melodias muito conhecidas de obras maiores em pecinhas de 2 a 5 minutos no máximo. Salada de frutas que se lambuza com mais-do-mesmo. Há exceções, claro, mas estou falando da grande maioria dos lançamentos.
Pois bem, a água já estava na altura do umbigo quando o cerco da IA fecha-se agora, em 2025. Já começa a ficar difícil manter-se à tona, com água pelo pescoço. Como saber quando a composição é humana ou de IA? Aliás, está ficando difícil até detectar se os músicos e intérpretes são humanos ou não.
É um momento-chave para o futuro da música. Aliás, também para as artes em geral. É por isso que nomes ilustríssimos solidarizam-se ou participam deste álbum-ícone dos dificílimos tempos. Não só Paul, Kate Bush, The Clash ou Jamiroquai, do lado pop; também um dos midas das trilhas sonoras Hans Zimmer; e estrelas do mundo clássico, como o coro The Sixteen de Harry Christophers e o tenor Ian Bostridge estão entre os mil que se solidarizaram e assinaram este protesto liderado por McCartney.
Livro ‘Paul McCartney: O Legado: Volume 1: 1969-73’
Livro de Allan Kozinn e Adrian Sinclair chega às livrarias brasileiras em 10 de novembro. Crédito: Editora Belas Letras/Divulgação
É inacreditável, mas o resultado concreto – sem trocadilho, juro – deste álbum significa um mergulho destes músicos tão díspares entre si mas igualmente famosos em duas fontes da vanguarda erudita do século 20 que inauguraram a opção de ouvir os sons que nos rodeiam, ouvi-los como música.
A primeira aconteceu nos anos 1940, com a música concreta idealizada por Pierre Schaeffer, o primeiro a levar para a sala de concerto, em Paris em 1948, os sons que captara aleatoriamente com um gravador, na rua, em casa, no estúdio.
A segunda quatro anos depois, em 29 de agosto de 1952, no Maverick Concert Hall, na floresta das montanhas Catskill, ao sul de Woodstock, nos EUA, onde reinaram, 17 anos depois, Janis Joplin e Jimi Hendrix num lendário festival de rock. Num festival de música de câmara, o pianista David Tudor incluiu “4’33”” de John Cage em seu recital: sentou-se ao piano, fechou a tampa do teclado e olhou para o cronômetro. Por duas vezes, nos 4 minutos e 33 segundos seguintes, levantou e abaixou a tampa indicando mudança de movimento. Não fez nenhum barulho. O silêncio do primeiro minuto deu lugar a ruídos de todo tipo: gente reclamando, saindo, mexendo-se na cadeira, tossindo. Cage trabalhou nela com o conceito de silêncio como “sons não-intencionais”. No final, num grande tumulto, um cidadão gritou lá do fundo: “Aí, gente boa de Woodstock, vamos botar esta turma pra correr da cidade”. Talvez esta seja a hora de gritar: “Aí, gente boa, vamos botar esta turma de IA pra correr”.

