PEC da segurança pública proposta pelo governo mira crime

“Na sua opinião, quem é responsável por cuidar da segurança das pessoas?”. A pergunta foi feita pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (IDDC-INCT) a 2,5 mil pessoas entrevistadas para a pesquisa A cara da democracia 2024. A maioria delas, 27%, afirmou que o governo federal tem essa atribuição, enquanto 24% responderam ser o governo estadual, e 16% disseram que seriam as autoridades municipais.

Mas, segundo a Constituição Federal, em seu artigo 144, parágrafo 6º, as polícias militares são subordinadas aos governadores dos estados e do Distrito Federal, excluindo o governo federal de qualquer competência sobre a segurança cidadã. 

Para alterar essa situação, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ) pretende enviar ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para aumentar as responsabilidades da União sobre a segurança, integrar as polícias e incluir no texto constitucional o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e sua fonte de financiamento.   

No dia 7 de agosto, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), se reuniu com ministros, e decidiu ampliar o debate sobre a PEC com governadores, além dos presidentes dos demais poderes. Na saída do encontro, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, disse à imprensa que a proposta só será encaminhada ao Congresso após ampla discussão com os governadores, os presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e das duas Casas Legislativas.    

“A PEC pretende dar maior responsabilidade à União no que diz respeito ao Sistema Único de Segurança Pública, instituído em 2018 por uma lei ordinária”, disse o ministro. “A questão da segurança pública será discutida não apenas entre quatro paredes, mas com toda a sociedade brasileira, com todas as lideranças. Isso deve ocorrer muito em breve, antes de finalizar a proposta para envio ao Congresso”, afirmou. 

Susp, financiamento e papel da União 

Em artigo publicado no portal Conjur no dia 30 de junho, Lewandowski detalhou as diretrizes da proposta. No texto, o ministro afirma que a segurança pública, “há muito, deixou de ser um problema local para tornar-se uma questão nacional” e que “é preciso modernizar o modelo concebido pelos constituintes de 1988”.  

Lewandowski propõe que a PEC adeque o texto constitucional para outorgar “à União a competência de coordenar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), instituído por simples lei ordinária (Lei 13.675, de 11 de junho de 2018)”, permitindo que o governo federal e o Congresso estabeleçam normas a serem seguidas pelas polícias estaduais. 

O coordenador de Advocacy da Plataforma Justa, Felippe Angeli, considera que, embora existam dispositivos legais que já permitem alguma intervenção da União em temas de segurança pública, esse pode ser um bom momento para abrir o debate e alavancar com um modelo integrado de segurança pública no país. 

“A centralidade do governo federal, da União, em coordenar o sistema segurança, tal qual ele está, como ele existe hoje, com as facções, com interiorização do crime, com o domínio dos presídios, com as facções, especialmente do Sudeste, dominando todo o país em diversas etapas, de todo o mecanismo criminal, dos processos de tráfico, de garimpo ilegal, tudo aquilo que é a participação do crime organizado, eu acredito que é, sim, politicamente necessária”, defende.  

Segundo Angeli, o Brasil já possui bons exemplos de sistemas integrados que, embora imperfeitos, constituem avanços na garantia de direitos sociais, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). “A gente tem referências dessa organização de sistemas complexos de direitos sociais, como saúde, educação e assistência social, com esses sistemas federativos e únicos”, diz. “Então, a própria aprovação da PEC entre governadores, o Congresso e a sociedade, vai fazer bem para esse debate”, avalia. 

Além de inserir o Susp na Constituição, Lewandowski propõe a criação de um Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, cujos recursos seriam repartidos entre os três níveis administrativos da federação para financiar o sistema, que teria seu contingenciamento proibido. 

Nova polícia 

O ministro propõe ainda a criação de uma nova polícia formada por civis, de caráter ostensivo, a partir da Polícia Federal (PF). “Ao contrário de outros países, o governo central não possui uma força policial capaz de coibir eficazmente a criminalidade, que, de modo crescente, se espalha por todo o território nacional”, escreveu o ministro.  

A proposta é vista com preocupação pelo ex-delegado da Polícia Civil, doutor em Ciências Políticas, Orlando Zaccone. “Chamar a PRF de polícia ostensiva da União é reforça algo que foi trazido pela ditadura militar, com todos os estigmas. Então, cria-se um paradoxo, repara: nós, no governo Bolsonaro, criticamos a PRF nas operações em conjunto com as PMs dentro das comunidades, gerando letalidade, gerando violência”, afirma.

“Inclusive teve aquele caso emblemático em que uma pessoa morreu por conta de gás que foi colocado em uma viatura, lá no nordeste, da Polícia Rodoviária Federal. Os agentes foram recentemente exonerados e demitidos da polícia. E a gente sempre olhando aquilo como um grande absurdo. E, agora, a gente quer meio que legitimar essa mudança da PRF. Ou seja, acho que nós temos que debater isso tudo com muita cautela”, defende. 

Para Zaccone, o primeiro passo é reconhecer os policiais como trabalhadores, a partir de um processo de desmilitarização das polícias. “Se quem opera a segurança pública nas ruas dentro das delegacias das unidades policiais são trabalhadores, eles devem se reconhecer enquanto tais e não serem construídos como soldados. Então a desmilitarização diz muito mais respeito a essa construção do policial trabalhador que hoje é impedido do direito de sindicalização no caso das polícias militares”, explica.    

“Ou seja, [existe] uma série de restrição a direitos fundamentais do trabalhador que são colocados aos policiais por conta da militarização. A desmilitarização vai permitir esse policial se constitui como trabalhador para que ele possa se reconhecer na luta dos outros trabalhadores.” 

As mudanças são reivindicadas há décadas por movimentos de defesa dos direitos humanos e defensores de uma segurança pública cidadã e desmilitarizada. Mas, nos bastidores, parlamentares afirmam que o governo terá que convencer principalmente os governadores, que, além de ter nas polícias militares uma espécie de exército próprio, exercem forte influência no Congresso Nacional.  

Nesse sentido, em reunião ministerial no dia 8 de agosto, o presidente Lula anunciou que o ministro da Justiça já começaria a dialogar com os governadores e buscou se antecipar às críticas. “A gente não quer tem ingerência nem quer mandar. A gente quer compartilhar ações conjuntas com a definição concreta na Constituição do papel de cada um de nós”, declarou o presidente.

Herança da ditadura 

Embora as polícias militares existam desde o século 19, durante o regime militar (1964 a 1985), essas corporações passaram por uma série de mudanças. A principal delas foi o Decreto 667, de 1969, que atribuiu às PMs a responsabilidade exclusiva pelo policiamento ostensivo, extinguiu ou integrou os contingentes das Guardas Civis às polícias militares e determinou que essas forças estivessem subordinadas ao Exército, sob coordenação da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM). Ou seja, a mesma PM que se conhece hoje. 

Na reunião do dia 7, Lewandowski lembrou que o Artigo 144 nunca sofreu nenhuma modificação desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, pese ter havido mudanças substanciais na forma de atuação do crime organizado. 

“Na nossa Constituição, promulgada há 35 anos, o capítulo relativo à segurança pública, que está no Artigo 144, não sofreu nenhuma modificação. E, de lá para cá, o espaço de uma geração, o crime organizado avançou muito, e não é mais um crime local. É um crime interestadual e até internacional”, declarou.

Edição: Martina Medina



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