Opinião
É de conhecimento geral o status constitucional do Tribunal de Contas e de suas competências, hauridas diretamente da Constituição.
Como defende o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, as atribuições do Tribunal de Contas são prerrogativas e, como tais, “[…] implicam o desfrute de condições especialmente propiciadoras do melhor desempenho possível das competências que a ele […] foram constitucionalmente adjudicadas”. [1]
É, portanto, inconstitucional que membros do Tribunal de Contas estabeleçam exegeses que redundem no esvaziamento de suas próprias competências, que vêm atreladas a uma série de prerrogativas destinadas à melhor execução de seu mister constitucional, notadamente, quando seu exercício impede que ilegalidades já cometidas sejam cessadas, sob pena de permanência do estado irregular. Mais uma vez, nas palavras do ministro Carlos Ayres Britto, in verbis: “[…] os Tribunais de Contas se assumem como órgãos impeditivos do desgoverno e da desadministração“. [2]
O núcleo das competências dos Tribunais de Contas consta do artigo 71 da Constituição. Entre tais competências, destaca-se aquela elencada no inciso IX do sobredito artigo 71, conforme o qual cumpre à Corte de Contas, in verbis: “assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade”.
Função sancionadora do Tribunal de Contas
Tem-se, no caso, a função corretiva, de natureza autônoma em relação às demais atribuições da Corte de Contas e que, conforme o artigo 71 da Constituição, constitui-se na “fixação de prazo para que o órgão ou entidade na qual se verificou a ilegalidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei e na eventual sustação do ato impugnado, quando não atendida a determinação exarada”. [3] Dela, decorre pretensão de mesma nomenclatura.
Por sua vez, a pretensão punitiva do Tribunal de Contas decorre de sua função sancionadora e, entre as diversas penalidades que podem ser impostas pelas Cortes de Contas, estão a multa, a declaração de inidoneidade e a inabilitação para o exercício de cargo ou função de confiança na administração pública.
A aplicação de multa, ressalte-se, está sujeita ao prazo prescricional de cinco anos, [4] por absoluta previsão legal, não sendo lícito estender seus efeitos às demais pretensões, posto que autônomas.
A função corretiva possui natureza mandatória — diferindo-se, nesse ponto, da mera expedição de recomendação —, uma vez que o jurisdicionado deve cumpri-la, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se a multa específica pelo descumprimento. [5] Justamente por isso, “quem recomenda não exerce função corretiva”. [6]
Spacca
Já se teve a oportunidade de examinar as diversas competências das Cortes de Contas, in verbis: “nos artigod 70 e 71 da Constituição da República de 1988 encontram-se as competências e atribuições dos Tribunais de Contas, que não podem ser reduzidas ou ampliadas pelo legislador infraconstitucional […]”. [7]
Ora, se as competências dos Tribunais de Contas não podem ser cerceadas pelo legislador, muito menos podem ser cerceadas pelos intérpretes da lei, em exegeses contrárias às próprias prerrogativas institucionais insertas no texto constitucional.
Pretensões punitiva e corretiva
No âmbito federal, a autonomia das pretensões punitiva e corretiva é reconhecida pelo artigo 12 da Resolução nº 344/2022, que disciplina a prescrição no âmbito do Tribunal de Contas da União. [8]
Em pesquisa realizada em todos os Tribunais de Contas do país, a partir das previsões de suas leis orgânicas, regimentos internos ou outros regulamentos de natureza infralegal, verificou-se que ao menos 17 das 33 Cortes de Contas possuem previsões, se não idênticas, muito semelhantes ao que consta do artigo 12 da Resolução TCU nº 344/2022. [9]
O sentido dessas normas é claro: preservar a competência do Tribunal de Contas para emitir determinações e, em alguns casos, atrelados a critérios de relevância e de materialidade definidos por cada órgão, para julgar contas, mesmo em face do reconhecimento da prescrição das pretensões punitiva e ressarcitória.
Fica claro, portanto, que, apesar de se reconhecer, em razão da prescrição, a impossibilidade de aplicar sanções e de determinar o ressarcimento de dano ao erário eventualmente apurado, fez-se, no âmbito do TCU e da legislação regente dos demais Tribunais de Contas, ressalva expressa à competência da Corte de Contas para julgar contas, expedir determinações e adotar recomendações ou outras providências.
Não é demais repetir: as pretensões punitiva e corretiva são autônomas e possuem naturezas distintas. A prescrição da pretensão punitiva se volta aos fatos puníveis passados. Por outro lado, a pretensão corretiva se projeta para o futuro, em vista de ilegalidades de caráter permanente que devem ser cessadas, a partir do exercício do dever-poder de determinar correções, competência constitucional proeminente do Tribunal de Contas.
Prescrição que fere segurança jurídica
Assim, entende-se que é contrária a dispositivo constitucional hígido a interpretação de que se possa estender a prescrição da pretensão punitiva para alcançar a pretensão corretiva, frise-se, sem previsão legal ou precedente judicial, e fulminar uma de suas mais notórias competências, inserta no artigo 71, IX, da CR/88, nos casos em que apenas se reconhece a prescrição da pretensão punitiva. Tal interpretação fere prerrogativa constitucional e autônoma da Corte de Contas consubstanciada no dever de exercer seu poder corretivo, quando as circunstâncias o exigirem.
Ademais, tem-se visto em algumas exegeses o manejo da prescrição para se desconstituir um acórdão hígido, que transitou em julgado, em razão de posterior mudança na jurisprudência do Tribunal de Contas.
Além de ofender a coisa julgada material, prevista no artigo 502 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), tal possibilidade fere os princípios da segurança jurídica e da isonomia, dando oportunidade de um novo julgamento, mesmo sem haver qualquer razão que acarrete a nulidade do julgamento anterior, o que colide frontalmente com o disposto no artigo 508 do CPC, posto que estão preclusas todas as alegações e defesas que poderiam ter sido formuladas pelo interessado.
Ignorar os efeitos da coisa julgada previstos no ordenamento jurídico e na jurisprudência significará que todas as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas estarão sujeitas a reanálise, bastando, por exemplo, o ajuizamento de pedido de rescisão ou seu sucedâneo, independentemente dos fundamentos nele contidos, mesmo que em confronto com a previsão legal autorizativa, a exemplo do disposto no artigo 109 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas de Minas Gerais (Lei Complementar nº 102/2008).
Competências do Tribunal de Contas não podem ser cerceadas
Por todo o exposto, diverge-se dos entendimentos que buscam relativizar a coisa julgada, em face do argumento de prescrição posteriormente verificada, contrariando cláusula pétrea constitucional insculpida no artigo 60, §4º, IV, da Constituição. Mantém-se, assim, a integridade das decisões proferidas pelas Cortes de Contas que ostentem o caráter de definitividade, haja vista o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Lei Maior, conforme o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Defende-se, uma vez mais, que o Tribunal de Contas, órgão de status constitucional, exerce competências diretamente atribuídas pela Constituição, as quais não podem ser cerceadas pela lei ou por seus intérpretes. As competências do órgão de controle externo são comumente agrupadas em funções, dentre as quais se destacam as funções punitiva e a corretiva, que são constitucionalmente autônomas.
A função punitiva possui caráter sancionatório. A função corretiva, de caráter mandamental e vinculante, revela-se na competência do Tribunal de Contas para assinar prazo para que o órgão ou entidade adote providências necessárias ao exato cumprimento da lei, bem como para sustar, caso não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão ao Poder Legislativo.
Entende-se que desconstituir um acórdão hígido do Tribunal de Contas, que transitou em julgado, em razão de posterior mudança da jurisprudência, não só ofende a coisa julgada, prevista no artigo 502 do Código de Processo Civil, como também fere os princípios da segurança jurídica e da isonomia. A jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ) corrobora tal constatação. [10]
Colhe-se, ainda, decisão do Tribunal de Contas da União, segundo o qual até mesmo as nulidades absolutas, que podem ser conhecidas de ofício, por se referirem a matéria de ordem pública, precluem se não forem arguidas até o advento do trânsito em julgado. [11]
Por tudo quanto exposto, conclui-se pela impossibilidade de relativizar a coisa julgada, invocando-se eventual prescrição não reconhecida a tempo e a modo, posto que, uma vez o fazendo, contraria-se cláusula pétrea insculpida no artigo 60, §4º, IV, da Constituição.
[1] BRITTO, Carlos Ayres. O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas. Editora Fórum, 21/09/2018. Disponível em: https://editoraforum.com.br/noticias/o-regime-constitucional-dos-tribunais-de-contas-ayres-britto/. Acesso em: 21 mai. 2024.
[2] Id., 2018.
[3] CONTI, José Maurício. Direito financeiro na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1998. p. 25.
[4] MOURÃO, Licurgo; MEGALI NETO, Almir; SHERMAM, Ariane; RESENDE, Mariana Bueno; PIANCASTELLI, Sílvia Motta. Controle Democrático da Administração Pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 188. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/L1504. Acesso em: 11 jun. 2024.
[5] Em sentido semelhante, segundo abalizada doutrina: “[…] a função corretiva consiste na emissão de determinação para cumprimento da lei, devendo ser observado o art. 20 do Decreto-lei nº 4.657/1942 (Lindb); […]”. In. MOTTA, Fabrício; GODINHO, Heloísa Helena. Processo de modernização e novas funções dos Tribunais de Contas. Conjur, 04/08/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-04/interesse-publico-processo-modernizacao-novas-funcoes-tribunais-contas/. Acesso em: 28 jun. 2024.
[6] MOURÃO, Licurgo; MEGALI NETO, Almir; SHERMAM, Ariane; RESENDE, Mariana Bueno; PIANCASTELLI, Sílvia Motta. Controle Democrático da Administração Pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 183. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/L1504. Acesso em: 11 jun. 2024.
[7] MOURÃO; MEGALI NETO; SHERMAM; RESENDE; PIANCASTELLI, op. cit., p. 162.
[8] “Art. 12. O reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva e da pretensão ressarcitória, a despeito de obstar a imposição de sanção e de reparação do dano, não impede o julgamento das contas, a adoção de determinações, recomendações ou outras providências motivadas por esses fatos, destinadas a reorientar a atuação administrativa”. Grifos acrescidos.
[9] Além do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo, do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul, do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco e do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, encontramos normatização idêntica ou assemelhada à do TCU nos seguintes tribunais de contas: Tribunal de Contas do Estado do Pará (Resolução nº 19.503/2023), Tribunal de Contas do Estado da Bahia (Resolução nº 000074/2023), Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (Instrução Normativa nº 7/2023), Tribunal de Contas do Estado do Acre (Resolução nº 126/2023), Tribunal de Contas do Estado de Rondônia (Resolução nº 399/2023/TCE-RO), Tribunal de Contas do Estado de Roraima (Resolução nº 010/2023), Tribunal de Contas do Estado do Maranhão (Resolução TCE/MA nº 383/2023), Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (Resolução Normativa TC nº 02/2023), Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará (Ato nº 23/2020, com as alterações promovidas pelo Ato nº 28/2024), Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia (Resolução nº 1.392/2019, com as alterações promovidas pela Resolução nº 1.479/2023), Tribunal de Contas do Município de São Paulo (Resolução nº 10/2023) e Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (Resolução TCMRio nº 80/2023).
[10 No STF, colhe-se o enunciado do Tema 136, leading case RE 590809, conforme o qual, “Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”. No STJ, citam-se as decisões de mérito nos EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg nos Embargos de Divergência em RESP n. 1.019.717; EDcl no AgRg no Agravo em Recurso Especial n. 418.622 e AgRg na AR n. 4584.
[11] Veja-se, a propósito, o Acórdão TCU 960/2018 – Plenário, relatado pelo Min. Benjamin Zymler.