Processo competitivo e renegociação de concessão de rodovias

Processo competitivo e renegociação de concessão de rodovias


Público & Pragmático

O modelo jurídico de concessões rodoviárias constitui uma ferramenta vital para modernizar a infraestrutura brasileira e garantir a prestação de serviços públicos que são essenciais à população. No entanto, no âmbito do programa de concessões de rodovias federais, muitos desses contratos de concessão não estão dando os resultados que eram esperados. São os chamados “ativos estressados”, ou seja, contratos que, por conta de mudanças econômicas, dificuldades de investimento ou uma combinação de outras questões endógenas e exógenas, não conseguem cumprir as metas originalmente pactuadas. Esse cenário termina por gerar rodovias em condições precárias e serviços muito abaixo do que os usuários demandam.

Diante disso, são constantes os conflitos entre o poder concedente, representado pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e pelo Ministério dos Transportes, e as concessionárias. De um lado, o poder público se vê de mãos atadas, dadas as regras contratuais que não proveem uma saída adequada para o impasse. De outro, as concessionárias pedem renegociações ou mesmo a relicitação dos contratos.

As soluções mais tradicionais, como a aplicação de multas e a instauração de processos judiciais e arbitrais acabaram se mostrando também lentas e ineficazes para resolver os conflitos e o descumprimento contratual de forma estrutural. O resultado? Conflitos complexos e intermináveis, investimentos travados e uma queda generalizada na qualidade dos serviços.

O consenso como caminho: soluções construídas em conjunto

Reconhecendo a urgência e a necessidade de uma abordagem inovadora, a ANTT, o Ministério dos Transportes, o Tribunal de Contas da União (TCU) e as concessionárias, com a mediação da Secretaria de Consenso (Secex-Consenso) do TCU, têm buscado construir soluções baseadas no consenso para lidar com os contratos de concessão estressados. O principal objetivo é renegociar esses contratos, restaurar sua exequibilidade e viabilidade, adaptando-os a uma nova realidade econômica e regulatória. Isso significa implementar alterações que modernizem seus termos para melhor atender às necessidades atuais do setor.

As renegociações envolvem mudanças importantes nos contratos, como forma de garantir uma gestão mais eficiente e equilibrada, tanto para o setor público quanto para o privado. Ademais, a modernização desses contratos apresenta uma importante externalidade positiva: sinaliza para potenciais investidores, tanto nacionais quanto internacionais, a capacidade do Estado de resolver problemas históricos e crônicos, por meio de instrumentos inovadores.

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Para que essas alterações contratuais sejam legítimas e transparentes, entretanto, é preciso construir um mecanismo que garanta que as concessões, após renegociadas, sejam geridas por quem apresente capacidade e condições de execução mais vantajosas para os usuários. É aqui que o processo competitivo entra como uma ferramenta diferenciada. Ele assegura que o poder concedente obtenha as melhores condições possíveis, sempre pensando no usuário final – o verdadeiro beneficiário de todo o processo.

Fundamentação jurídica: flexibilidade e eficiência

O processo competitivo se ampara em uma base jurídica sólida, respaldada pela legislação brasileira, especialmente pela Lei nº 10.233/2001, que confere à ANTT a competência para gerenciar, celebrar, e modificar contratos de concessão de infraestrutura rodoviária. Além disso, a agência tem o poder de anuir e supervisionar a transferência de controle das concessionárias, assegurando que o novo controlador tenha a capacidade técnica e financeira para cumprir o contrato renegociado.

Mais do que uma simples formalidade, o processo competitivo é, em primeiro lugar, uma manifestação do princípio da discricionariedade administrativa. Os gestores públicos podem e devem adotar medidas flexíveis para atender o interesse público de forma mais eficiente, possuindo uma ampla margem de ação focada nos resultados necessários. O artigo 37 da Constituição estabelece que a administração pública deve seguir o princípio da eficiência – ou seja, o Estado tem que buscar resultados práticos, que criem valor social e melhorem a qualidade de vida dos cidadãos.

O princípio da eficiência não é apenas mais um entre os muitos que guiam a administração pública, mas sim o norte que direciona toda a sua atuação. Não há espaço para soluções que sejam apenas legalmente corretas, mas ineficazes, pois isso constituiria uma violação direta da Constituição. A administração pública não existe para aplicar a lei de forma cega e sem consideração pelos resultados. Pelo contrário, é essencial que as suas decisões levem em conta os efeitos práticos e o impacto gerado. Esse foco nos resultados foi reforçado, inclusive, por atualizações recentes da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), que trazem ainda mais ênfase na necessidade de avaliar as consequências das decisões administrativas.

O processo competitivo encontra ainda seu fundamento na possibilidade de transferência de controle societário das concessionárias de rodovias federais. A Lei 8.987/95 prevê expressamente essa situação, admitindo que uma concessionária tenha seu controle transferido por meio de um negócio privado, que deve contar com a anuência prévia do poder concedente.

Sendo assim, os detentores das ações que representem o controle da concessionária podem aliená-las no mercado, do que se pode concluir que tais ações constituem um direito disponível e, portanto, passível de transação. Em um processo de renegociação contratual, o acordo pode envolver um compromisso da concessionária (mais especificamente, de seu grupo controlador) de oferta das ações que representem seu controle societário no mercado, e isso pode ser feito por meio de um processo competitivo privado, estruturado em conjunto pela concessionária e poder concedente, como instrumento de seleção de uma melhor proposta.

Esse modelo de transferência de controle tem também apoio em decisões judiciais importantes, como a recente decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 2.946, que considerou constitucional a troca de controle nas concessões públicas. Se o grupo controlador da concessionária, por sua livre vontade, no âmbito de uma renegociação contratual, concorda com a venda das ações da SPE, esta decisão está plenamente fundamentada na possibilidade legal de troca de controle societário, previsto em lei e de constitucionalidade reconhecida pelo STF.

O caso da CRO: troca de controle regulada no âmbito de uma renegociação

A transferência de controle da Concessionária Rota do Oeste (CRO), responsável pela gestão de 850,9 km da BR-163/MT, representa um marco no setor de concessões rodoviárias no Brasil. Em uma solução inovadora liderada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a concessionária passou a ser controlada pela MT Participações e Projetos (MT PAR), empresa de economia mista controlada pelo estado do Mato Grosso.

Essa transferência, concluída em maio de 2023, foi viabilizada como alternativa à relicitação, evitando também um longo processo de caducidade do contrato. A operação incluiu a quitação de dívidas da CRO, totalizando cerca de R$ 920 milhões, e previu um investimento de R$ 1,6 bilhão nos dois primeiros anos para melhorias na rodovia, incluindo duplicação de pistas e obras de infraestrutura crítica, como travessias urbanas e recuperação de pavimento.

A troca de controle no caso da CRO ocorreu também no âmbito de uma renegociação contratual, como condição para a implementação de ajustes e alterações no instrumento contratual original. A ANTT desempenhou um papel crucial ao aprovar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que estabeleceu as condições para a transferência e definiu os compromissos de investimento da nova concessionária. O objetivo principal foi garantir a continuidade dos serviços, com foco na segurança e na melhoria das condições de tráfego para os usuários

Embora no caso da CRO não tenha sido aplicado o processo competitivo devido à transferência de controle ter ocorrido para a empresa pública estadual MT Participações e Projetos (MT PAR), configurando uma operação de público para público, esse exemplo é extremamente relevante.

A renegociação, consubstanciada em um TAC, foi aprovada por unanimidade pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o que reforça a competência da ANTT para disciplinar e regular a troca de controle das concessionárias como um importante instrumento de gestão contratual. Essa operação envolveu não apenas a transferência de controle, mas também a renegociação de dívidas e um compromisso de ajustamento de conduta, além de um termo aditivo contratual, mostrando a capacidade da agência de gerenciar e supervisionar processos complexos de reestruturação dentro do marco legal atual.

O processo competitivo: como funciona e quais são seus objetivos

O processo competitivo está sendo criado como instrumento agregado à solução consensual, que envolve uma renegociação dos contratos de concessão. A ideia central é possibilitar a transferência do controle da Sociedade de Propósito Específico (SPE), que administra a concessão, por meio de um leilão público. Esse leilão garantirá que o controle passe para a empresa que apresentar as melhores condições financeiras e técnicas, assegurando a viabilidade do projeto e a qualidade dos serviços.

Na prática, o processo envolverá a venda de 100% das ações da concessionária, mantendo o contrato de concessão vigente, mas com atualizações necessárias para modernizar a concessão e adaptá-la às novas condições de mercado. O leilão será conduzido de forma transparente, com regras claras para garantir a competitividade entre os participantes. O critério principal de seleção é o deságio sobre a tarifa de pedágio, garantindo que o usuário final pague menos pelos serviços, sem comprometer a qualidade.

Um detalhe importante é que o processo competitivo não é uma relicitação, mas uma troca de controle dentro da mesma SPE, na hipótese de oferta de menor tarifa por potenciais interessados. Isso evita interrupções nos serviços e longos períodos de transição, que poderiam prejudicar os usuários da rodovia. O contrato de concessão continua, mas com uma nova gestão, comprometida em realizar os investimentos necessários e melhorar os serviços.

Vale destacar que, se o atual grupo controlador da SPE apresentar a melhor proposta durante o leilão público, ele poderá continuar no controle da concessão. Isso significa que, mesmo após a realização do processo competitivo, o grupo atual poderá seguir à frente da gestão, desde que demonstre ser a opção mais vantajosa para garantir a viabilidade do contrato renegociado e modernizado. Nesse cenário, o grupo controlador dará seguimento à execução das melhorias necessárias, assegurando um serviço mais eficiente e alinhado às novas condições de mercado, sempre com o foco na prestação de serviços de qualidade e na segurança para o usuário final.

A troca de controle, nesse contexto, permanece sendo um negócio privado, um contrato de compra e venda de ações entre particulares, sob a supervisão da Agência, que tem seu interesse situado na obtenção de uma melhor tarifa de pedágio para o usuário, critério de seleção do leilão. O valor a ser pago pelos participantes do leilão, para a compra do controle da concessionária, é fixo e estabelecido previamente no edital.

Mitigando riscos morais e sistêmicos

Um dos maiores desafios nas renegociações de contratos de concessão é a mitigação dos chamados riscos morais e sistêmicos. O risco moral, em uma explicação simplificada, ocorre quando concessionárias descumprem suas obrigações contratuais, mas ainda assim buscam vantagens nas renegociações, incentivando o descumprimento dos contratos. Já o risco sistêmico se refere ao impacto generalizado que esse tipo de comportamento pode ter no setor como um todo, prejudicando a credibilidade do modelo de concessões e afastando futuros investidores.

O processo competitivo ajuda a resolver esses problemas, criando um ambiente de concorrência transparente, no qual a concessionária que renegocia seu contrato assume um risco, podendo ter seu controle societário assumido por um grupo diverso. Ele corrige a assimetria de informações entre o poder público e as concessionárias, garantindo que as renegociações não sejam apenas ajustes para beneficiar o parceiro privado, mas sim que sirvam como verdadeiros instrumentos para trazer benefícios à sociedade. E mais, o processo competitivo permite que a Agência, sem desnaturar a troca de controle enquanto negócio privado, acompanhe a operação, certificando-se de clareza das regras competitivas, de sua publicidade e da isonomia no acesso às informações pelos interessados, tudo em prestígio à adequada e contínua prestação do serviço público outorgado.

Ao submeter o controle da SPE a um leilão, o processo competitivo elimina qualquer possibilidade de privilégio ou vantagem para a concessionária atual. A empresa é forçada a competir em igualdade de condições com novos entrantes, inibindo comportamentos oportunistas e garantindo que a concessão seja assumida por quem realmente tem capacidade técnica e financeira para executar o projeto de forma eficiente.

Considerações finais: um novo paradigma para as concessões

O processo competitivo não é só uma inovação regulatória – ele é uma ferramenta jurídica sólida, que oferece segurança tanto para o Estado quanto para os investidores. Esse mecanismo permite uma gestão mais eficiente das concessões, permitindo que as partes negociem saídas para problemas históricos e críticos, sempre alinhados com os princípios constitucionais e com o compromisso de entregar resultados para a sociedade.

As renegociações e o processo competitivo materializam o conceito de parceria público-privada, compreendida em sua acepção mais abrangente e profunda, na qual as soluções não são simplesmente impostas unilateralmente, mas sim concebidas de forma colaborativa, com vistas a preservar e equilibrar os interesses de todas as partes envolvidas. Nesse sentido, o processo competitivo se apresenta como uma solução moderna, transparente e eficiente para assegurar a proteção do interesse público e a garantia da melhor proposta para os usuários das concessões, baseado em uma arquitetura jurídica inovadora, estabelecendo um novo paradigma na gestão de concessões no Brasil.

 



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