É possível e muitas vezes viável recorrer de multa gravíssima por “deixar de dar preferência a pedestre”, especialmente quando há dúvida sobre a situação do pedestre (se estava na faixa, se havia iniciado a travessia, se não concluiu a travessia com o sinal verde para veículos), quando o agente aplicou o inciso errado do art. 214 do CTB, quando faltam dados essenciais no auto de infração ou quando a notificação foi expedida fora do prazo.
O processo de defesa se dá em até três etapas: Defesa Prévia, Recurso à JARI e Recurso em 2ª instância ao CETRAN/CONTRANDIFE. Abaixo, explico passo a passo como identificar boas teses, organizar provas e protocolar cada fase com segurança, além de exemplos práticos de argumentos.
O que exatamente configura a infração do art. 214 do CTB
O Código de Trânsito Brasileiro tipifica como infração “deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado” em situações específicas. Quando o pedestre está na faixa, não concluiu a travessia com o sinal verde para os veículos, ou é pessoa idosa, criança, gestante ou pessoa com deficiência, a infração é gravíssima, com penalidade de multa e 7 pontos. Já outras situações (como o pedestre que apenas iniciou travessia fora de faixa) podem ser graves (5 pontos). Saber distinguir esses cenários é crucial para a defesa, pois a descrição do fato precisa bater com o inciso correto do art. 214.
Quando a multa é realmente gravíssima (e quando pode ser apenas grave)
Nem todo enquadramento de “preferência ao pedestre” é gravíssimo. De forma resumida:
Gravíssima (7 pontos, multa) quando:
I) o pedestre está na faixa;
II) o pedestre não concluiu a travessia, ainda que o sinal tenha ficado verde para os veículos;
III) o pedestre é pessoa idosa, com deficiência, criança ou gestante.Grave (5 pontos, multa) quando:
IV) o pedestre iniciou a travessia mesmo sem sinalização a ele destinada;
V) o pedestre atravessa via transversal para onde o veículo se dirige.
Essa distinção importa porque muitas autuações são lavradas genericamente como “gravíssima”, sem que a narrativa comprove que o pedestre estava, por exemplo, na faixa ou sem concluir a travessia. Nesses casos, cabe invocar o enquadramento incorreto ou a atipicidade do inciso indicado.
Preferência do pedestre: o que diz a regra geral
Como regra, pedestre na faixa tem prioridade. Em locais com semáforo, valem as disposições do CTB (pedestre deve respeitar o sinal), mas quem dirige deve garantir a segurança de quem já está na travessia. Esse pano de fundo ajuda a delimitar a tese: se não havia pedestre na faixa, se ninguém havia iniciado travessia, ou se o pedestre aguardava no passeio, a conduta pode ser atípica para os incisos gravíssimos.
Itens obrigatórios no Auto de Infração (e por que eles derrubam multas)
O Auto de Infração é o documento que dá início ao processo. Ele deve conter, entre outros, a tipificação, local, data, hora, placa, marca/espécie do veículo, identificação do agente ou equipamento e o prontuário do condutor (quando possível). A ausência ou inconsistência de dados essenciais pode invalidar o auto por vício formal. Por exemplo: local incompleto, horário incompatível com a dinâmica do fato, tipificação genérica (sem inciso) ou falta de identificação do agente/equipamento.
Além disso, a administração deve expedir a Notificação de Autuação em até 30 dias da data do fato, sob pena de arquivamento do auto. Esse é um dos vícios mais objetivos para pedir o cancelamento.
Prazos e fases do recurso: o caminho completo
O processo administrativo punitivo segue uma trilha com até três oportunidades de defesa:
Defesa Prévia
É a primeira chance, antes da imposição da penalidade. O prazo não pode ser inferior a 30 dias, contados da expedição da Notificação de Autuação. Aqui você ataca vícios formais (p. ex., prazo de 30 dias para expedição descumprido, falhas no auto, ausência de tipificação precisa, erros no local/data/hora).Recurso à JARI (1ª instância)
Caso a penalidade seja imposta, você pode recorrer à JARI. Órgãos e entidades usualmente informam prazo de 30 dias na Notificação de Penalidade. Em muitas jurisdições, o protocolo pode ser on-line.Recurso ao CETRAN/CONTRANDIFE (2ª instância)
Se mantida a penalidade, cabe novo recurso, normalmente também com prazo de 30 dias a contar da publicação/cientificação da decisão da JARI.
Dica prática: leia sempre a notificação, pois o órgão pode fixar prazos maiores; respeite o prazo que constar no documento.
Pagar com desconto ou recorrer? Estratégia financeira e jurídica
O CTB permite pagamento com 20% de desconto até o vencimento. Para quem aderiu ao Sistema de Notificação Eletrônica (SNE) e renuncia à defesa e recursos, a multa pode ser paga por 60% do valor (desconto de 40%). Contudo, se a prova favorece o motorista, recorrer pode ser melhor que aceitar o desconto com renúncia, sobretudo em uma gravíssima que soma 7 pontos e pode acelerar a suspensão por pontos.
A diferença entre gravíssima e autossuspensiva
Multa gravíssima soma 7 pontos, mas não é, por si, autossuspensiva (a menos que a lei expressamente assim preveja, o que não ocorre no art. 214). A perda temporária do direito de dirigir ocorre pelo excesso de pontos ou por outras infrações específicas autossuspensivas (como dirigir alcoolizado). Logo, além da multa, a sua maior preocupação é o impacto de 7 pontos no prontuário.
Como montar uma boa Defesa Prévia: checklist essencial
Na Defesa Prévia, foque em vícios formais e procedimentais:
Prazo de 30 dias para expedir a autuação: comprove a data da infração e a data de expedição (não é a data em que você recebeu). Se o órgão expede após 30 dias, cabível o arquivamento.
Auto incompleto ou impreciso: falhas no local (logradouro/número ou km), horário, identificação do agente/equipamento, tipificação sem inciso correspondente, relato lacônico que não demonstra o cenário exigido para a gravíssima.
Competência e circunscrição: verifique se o órgão autuador tinha competência no local (p. ex., rodovia estadual vs. municipal).
Indicação do condutor: se o proprietário não conduzia, providencie a indicação no prazo correto (quando aplicável), para que os pontos alcancem quem dirigia.
Como construir o Recurso à JARI: teses de mérito e provas
Na JARI, além de repetir vícios formais ainda não sanados, desenvolva teses de mérito:
Inexistência de pedestre na faixa
Se não havia pedestre na faixa, o inciso que sustenta a gravíssima não se aplica. Use fotos, vídeos de câmera veicular, imagens de segurança, testemunhas e croquis do local.Pedestre aguardava no passeio
A mera presença do pedestre no passeio não gera, por si, a obrigatoriedade de parada total. A obrigação qualificada de preferência subsiste quando ele está na faixa ou iniciou travessia. Se não iniciou, a tipificação pode ser improcedente.Travessia não iniciada / fora de faixa
O inciso IV (quando o pedestre apenas iniciou travessia sem sinalização destinada) é grave e não gravíssima; se o agente descreveu um cenário do inciso IV, mas autuou como gravíssima, há erro de enquadramento.Sinal verde para veículos e travessia já concluída
A gravíssima do inciso II pressupõe que o pedestre não concluiu a travessia mesmo com o sinal verde para os veículos. Se a travessia estava concluída ou se o pedestre não estava mais na zona de conflito, a conduta é atípica para esse inciso.Visibilidade comprometida e direção defensiva
Demonstre velocidade reduzida, distância de segurança e ausência de risco concreto (telemetria da central multimídia, rastreador, tacógrafo, vídeos). A dúvida factual e a insuficiência de prova concreta devem favorecer o administrado.Descrição genérica do agente
Narrações reproduzidas de “modelo” (sem indicar faixa, direção do veículo, posição do pedestre, semaforização) afrontam a necessidade de individualização do fato.Princípio da razoabilidade na dinâmica urbana
Mostre que houve atenção ao pedestre e que a preferência não se impunha naquele instante (p. ex., pedestre distante, sinal para veículos recém-aberto e pedestre fora do perímetro de conflito), afastando a materialidade da gravíssima.
Recurso ao CETRAN/CONTRANDIFE: quando insistir vale a pena
Se a JARI mantiver a penalidade, o CETRAN/CONTRANDIFE é a última instância administrativa. Insista quando houver:
Prova objetiva (vídeo, fotos, testemunhos) que contrarie a narrativa do auto;
Erro evidente de enquadramento (gravíssima aplicada aos fatos do inciso IV, que é grave);
Vício formal incontornável (autuação expedida após 30 dias, auto sem dados essenciais).
Organização das provas: como fazer o conjunto probatório “falar”
Vídeo da câmera veicular: exporte o trecho integral com metadados (data e hora).
Mapas e croquis: desenhe a posição do veículo, do pedestre e da faixa.
Fotos do local: horário semelhante, ângulo do motorista, sinalização horizontal/vertical.
Testemunhas: identifique nome, telefone e anexos com declaração assinada.
Documentos do veículo e do condutor: CNH, CRLV, comprovante de residência.
Registros públicos: protocolos de atendimento do órgão, prints do portal de multas.
Memoriais: um resumo de 1–2 páginas, amarrando fatos, direito e pedidos.
Estrutura-modelo para a sua peça (aplicável em Defesa Prévia/JARI/CETRAN)
Qualificação do recorrente e do veículo.
Síntese dos fatos: descrever a autuação e o contexto.
Preliminares:
a) nulidade por expedição da NA após 30 dias;
b) vícios do auto (art. 280 do CTB: local, hora, agente, tipificação).Mérito:
a) cenário fático não se enquadra nos incisos gravíssimos (I, II ou III);
b) caso concreto, quando muito, corresponde ao inciso IV (grave), com pedido subsidiário de readequação de enquadramento e penalidade;
c) dúvida razoável e insuficiência probatória.Pedidos:
a) cancelamento do auto e da penalidade;
b) subsidiariamente, readequação do enquadramento;
c) efeito suspensivo/abstenção de lançar pontos enquanto pendente de julgamento, conforme prática do órgão;
d) comunicações devidas ao RENAINF/RENACH, se for o caso.Protesta por provas e termo de encerramento.
Exemplos práticos de teses vencedoras
Erro de inciso: o pedestre estava fora da faixa e apenas “deu um passo” já com o veículo em marcha, sem semáforo e sem faixa. A descrição do auto apontou “deixar de dar preferência a pedestre”, mas não descreveu faixa nem travessia não concluída. Tese: inciso IV (grave), e não incisos I–III (gravíssima), ou atipicidade se nem travessia se iniciou.
Notificação intempestiva: a infração ocorreu em 10/03; a expedição da NA é de 15/04 (36 dias). Tese: arquivamento por descumprimento do prazo legal. Anexos: cópia da NA com a data de expedição e prova da data do fato.
Auto lacônico: o agente não indica se havia faixa, se havia semáforo, se o pedestre iniciou travessia. Tese: insuficiência descritiva para materializar os elementos do tipo (incisos gravíssimos), violando o dever de individualizar a conduta (art. 280).
Como os órgãos costumam julgar: expectativas realistas
Defesas procedentes: vícios formais objetivos (prazos, falta de dados essenciais) e casos com prova robusta do motorista (vídeo claro).
Defesas improcedentes: quando há relato minucioso do agente e o motorista não apresenta prova contrária.
Readequação do enquadramento: nem sempre é aplicada, mas pode ser pleiteada de forma subsidiária quando o relato descreve hipótese de inciso grave (IV/V), e o autuador aplicou gravíssima.
Impacto no prontuário e risco de suspensão
A multa gravíssima soma 7 pontos. Em motoristas com várias autuações em 12 meses, esses pontos podem levar à suspensão por pontos. Assim, além do valor financeiro da multa, a estratégia recursal busca evitar que 7 pontos ingressem no prontuário, seja com o cancelamento ou, subsidiariamente, com reclassificação para grave (5 pontos).
Dicas práticas para aumentar suas chances
Protocole no prazo e confira o número de protocolo. Em muitos Estados, é possível protocolar online. Detran SC
Seja objetivo: junte provas e organize em anexo com índice (Anexo 1 – Vídeo; Anexo 2 – Fotos; Anexo 3 – Croqui; etc.).
Evite argumentos genéricos (“indústria da multa”) e foque na facticidade (onde estava o pedestre, sinalização, dinâmica).
Eduque o julgador: anexe imagem do local (Google Maps com marcações pode ajudar) e destaque a posição da faixa.
Não confunda regras: o pedestre na faixa tem prioridade (incisos I–III); fora dela ou apenas iniciando travessia, o cenário pode mudar (inciso IV/V).
Tabela-resumo: art. 214 do CTB (preferência ao pedestre)
| Hipótese (resumo) | Inciso | Classificação | Pontos | Valor da multa |
|---|---|---|---|---|
| Pedestre na faixa | I | Gravíssima | 7 | R$ 293,47 |
| Pedestre não concluiu travessia, mesmo com verde p/ veículos | II | Gravíssima | 7 | R$ 293,47 |
| Pedestre idoso, criança, gestante, pessoa com deficiência | III | Gravíssima | 7 | R$ 293,47 |
| Pedestre iniciou travessia sem sinalização destinada | IV | Grave | 5 | R$ 195,23 |
| Pedestre atravessa via transversal para onde o veículo se dirige | V | Grave | 5 | R$ 195,23 |
Fonte normativa: art. 214 do CTB e informações complementares sobre classificação e valores por inciso.
Exemplo de peça (esqueleto) para você adaptar
Assunto: Defesa/Recurso – AIT nº XXXXX – Art. 214, inciso ___, CTB
Recorrente: Nome completo, CNH nº, CPF
Veículo: Placa, Marca/Modelo1. Síntese
Trata-se de autuação por suposta infração ao art. 214, ___, do CTB, sob alegação de que o recorrente teria deixado de dar preferência a pedestre em [local], [data/hora].2. Preliminares
2.1. Nulidade por expedição da NA após 30 dias (art. 281, par. ún., II) – arquivamento do auto.
2.2. Vícios do AIT (art. 280): ausência/insuficiência de [local, hora, identificação do agente/equipamento, tipificação com inciso].3. Mérito
3.1. Fatos não se enquadram nos incisos gravíssimos I–III: não havia pedestre na faixa / não houve travessia iniciada / pedestre aguardava no passeio / travessia já concluída.
3.2. Subsidiariamente, caso se reconheça conduta diversa, trata-se de cenário do inciso IV (grave), razão pela qual se requer readequação do enquadramento e penalidade.4. Provas
Anexa-se vídeo/fotos/croqui/testemunhos que demonstram a inexistência dos pressupostos da gravíssima.5. Pedidos
a) cancelamento do AIT e da penalidade; b) subsidiariamente, reclassificação; c) comunicações de praxe ao RENAINF/RENACH.Termos em que, pede deferimento.
Local, data, assinatura.
Perguntas e respostas
Deixar de dar preferência a pedestre é sempre gravíssima?
Não. É gravíssima quando o pedestre está na faixa, não concluiu a travessia (ainda que o sinal fique verde para veículos) ou é idoso, gestante, criança ou pessoa com deficiência. Há hipóteses graves (como o pedestre que apenas iniciou travessia sem sinalização).
Como descubro se o agente usou o inciso correto?
Leia a descrição do fato no auto: ela deve dizer se havia faixa, se o pedestre iniciou travessia, se não concluiu travessia. A narrativa precisa “encaixar” no inciso. Descrições genéricas dão margem à defesa por enquadramento indevido.
Qual o prazo para a Defesa Prévia?
A notificação deve informar o prazo, que não pode ser inferior a 30 dias contados da expedição. Se a própria expedição da autuação ocorreu após 30 dias do fato, peça o arquivamento do auto.
E o prazo para recorrer à JARI e ao CETRAN/CONTRANDIFE?
Em regra, 30 dias (verifique a notificação, que pode trazer prazo maior). Após a decisão da JARI, cabe nova impugnação ao CETRAN/CONTRANDIFE em prazo similar.
Posso protocolar o recurso on-line?
Na maioria dos Estados e órgãos, sim. Portais de DETRAN, DER e DNIT oferecem protocolo eletrônico; confira o site do órgão autuador indicado na notificação.
Se eu pagar com desconto, perco o direito de recorrer?
Ao aderir ao SNE e renunciar à defesa, pode-se pagar por 60% do valor (40% de desconto). Se você pretende recorrer, não opte pela renúncia. O desconto padrão é de 20% até o vencimento do boleto.
Essa multa suspende minha CNH automaticamente?
Não. Ela soma 7 pontos. A suspensão ocorre pelo excesso de pontos (ou por infração autossuspensiva, que não é o caso do art. 214).
Que provas ajudam mais?
Vídeos (câmera veicular), fotos do local, croquis, testemunhos, registros de telemetria e documentos que mostrem a sinalização, a faixa e a posição do pedestre no momento.
Se o pedestre estava fora da faixa, mas iniciou a travessia, ainda é gravíssima?
Em geral, essa hipótese corresponde ao inciso IV do art. 214, que é grave, não gravíssima. Se autuaram como gravíssima, pleiteie readequação.
O que acontece se eu perder na JARI e no CETRAN?
Mantém-se a penalidade e a pontuação. Você ainda pode avaliar a via judicial em situações de ilegalidade evidente (prazo de expedição violado, ausência de elementos essenciais, erro de tipificação grosseiro), ponderando custo/benefício com um advogado.
Conclusão
Recorrer de multa gravíssima por “deixar de dar preferência a pedestre” é plenamente possível e faz sentido em diversos cenários, sobretudo quando o relato do agente não descreve os elementos que caracterizam os incisos gravíssimos do art. 214 do CTB, quando há dúvida sobre a dinâmica (faixa, início e conclusão da travessia), quando o pedestre estava fora da faixa (hipótese de infração grave, não gravíssima), quando o auto carece de dados obrigatórios ou quando a Notificação de Autuação foi expedida após 30 dias do fato. A estratégia passa por três etapas: Defesa Prévia, JARI e CETRAN/CONTRANDIFE, sempre com atenção a prazos, provas e coerência entre o fato narrado e o inciso aplicado.
No aspecto prático, a melhor defesa é a que organiza bem as provas (vídeo, fotos e croquis) e demonstra, com didática, por que não houve a situação descrita nos incisos gravíssimos. Quando houver erro de tipificação, peça o cancelamento e, subsidiariamente, a readequação para o inciso correto. Por fim, avalie com cuidado a alternativa de pagar com desconto versus recorrer: em multas gravíssimas, muitas vezes evitar os 7 pontos é mais valioso do que um abatimento financeiro imediato. Com método, provas e atenção aos detalhes formais, suas chances de êxito aumentam sensivelmente.
