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Sérgio Rodrigues: IA não vai acabar com a literatura – 26/07/2025 – Ilustríssima

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Escrever é difícil e é de se esperar, diz Sérgio Rodrigues, que a maioria dos humanos terceirize esse trabalho para robôs que imitam tão bem a nossa linguagem, talvez até melhor que nós mesmos.

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Para o escritor e colunista da Folha, a inteligência artificial inaugura uma nova era das letras, em que escrever será uma escolha, não uma habilidade cotidiana imprescindível.

A literatura, por outro lado, não deve desaparecer com o avanço da tecnologia. Em “Escrever É Humano” (Companhia das Letras), o autor reflete sobre as especificidades do ofício e sustenta que a inteligência artificial generativa é formidável em produzir textos repetindo o que já foi escrito, mas que, devido à sua incapacidade de criar obras originais, não pode invadir o terreno da escrita literária.

Na entrevista, Rodrigues afirma que a escrita literária deve se tornar um nicho ainda menor, como uma aldeia gaulesa de escrita humana cercada por todos os lados por uma paisagem textual dominada por máquinas.

Leia abaixo os trechos principais da entrevista. A íntegra está disponível em áudio.

Escrita de fogo e escrita de gelo

A escrita de fogo é aquela em que a linguagem te carrega. Você se deixa levar por uma musicalidade, por um ritmo, em busca de algo que nem sabe direito o que é. A escrita de gelo é a racionalidade: quando você para para editar o material que produziu e tira excessos, acrescenta coisas, começa a pensar naquilo como um objeto que precisa ser lido e compreendido.

Acho que não tem como abrir mão de nenhuma dessas dimensões na escrita, pelo menos não na escrita de ficção porque, se você tiver fogo puro, pode, no máximo, escrever um microconto ou um poema de três versos que venha como pura intuição, puro lampejo, pura sacada. Em uma história mais longa, vai precisar combinar esses dois lados da escrita.

Trabalho individual, linguagem coletiva

A literatura sempre busca ser veículo de um certo espírito coletivo da linguagem. No momento em que você bota uma história na rua, está buscando falar de algo que te transcende.

O que te transcende? O que nos une? Acho que é a linguagem. Como acessar esse espírito? É uma luta e cada um tem que encontrar o caminho.

Uma coisa que eu posso garantir que é pura verdade: algumas das maiores dificuldades que eu tive —encruzilhadas, impasses— foram resolvidas de maneira quase inconsciente. Mas depois de trabalhar muito, depois de quebrar a cabeça por muito tempo, você meio que abandona aquilo, esquece aquele problema e se distrai. Às vezes, é exatamente aí que a solução se apresenta pronta, como se ela viesse de algum lugar inacessível.

Tem o risco de o discurso parecer meio místico e meio mágico. Não é nada disso, é trabalho, mas acho que tem um certo grau de dificuldade nas questões de escrita em que a racionalidade não basta.

Talento e esforço

Essa é uma questão bastante controversa. Conheço muita gente que nega categoricamente que exista algo parecido com talento, que é tudo esforço e puro trabalho e que qualquer pessoa que se esforçar pode chegar lá.

Não concordo com isso. Me parece, inclusive, um discurso meio contaminado pela autoajuda. “É só querer muito que o universo vai conspirar a seu favor.” Acho que isso é balela. Claro que existe talento para escrever, existe talento para tudo. Em todas as atividades humanas, algumas pessoas têm mais facilidade que outras. Seria muito esquisito se a escrita literária fosse exceção.

Agora, acho perigoso acreditar que o talento é tudo ou que o talento é suficiente. Claro que não é. Ele pode até atrapalhar. Se for muito exuberante e se manifestar de maneira precoce, pode deixar o sujeito acomodado.

O mais importante é, sem dúvida nenhuma, o trabalho, e acreditar demais em inspiração, em coisas que acontecem magicamente, sem trabalho, não vai levar ninguém a lugar nenhum.

Buscar a palavra justa

Existem alguns parâmetros que costumam ser bastante úteis na hora de encontrar o texto ideal para o que você está querendo contar. A concisão, por exemplo, é um valor inegável em certo tipo de texto. Talvez até se possa dizer que, no jornalismo, ela é universal, mas na ficção não é. Dependendo dos objetivos que você tem como escritor, pode chegar lá usando poucas palavras e carregando todas elas de sentido ou pode chegar lá jorrando uma coisa muito caudalosa de palavras. Não acho que dê para estabelecer regras de antemão em relação a essas coisas. Acaba sendo uma questão de estilo, de proposta estética de cada um.

Tem outra dimensão, que talvez a gente possa chamar de universal: a da precisão das palavras. É um erro bastante comum em escritores iniciantes, às vezes não só os iniciantes, usar as palavras com uma certa frouxidão semântica. Acho isso grave. Isso vale tanto para o estilo seco e conciso quanto para o estilo barroco e caudaloso.

As palavras precisam ter um significado muito preciso. Aquilo que virou meio que uma lenda, meio que uma obsessão e uma certa mistificação: Gustave Flaubert gostava de falar que passava horas buscando a palavra justa, tirando os excessos que se prestam à anedota. Acho que a nossa tarefa é buscar a palavra justa. Isso não precisa ser justificativa para uma paralisia, mas o trabalho dos escritores é, entre outras coisas, tornar a linguagem um instrumento o mais afiado possível para dar conta do mundo.

A linguagem vive perdendo o fio no dia a dia. A gente vive falando as coisas de maneira imprecisa, com redundância, com rebarbas, com imprecisão, porque é a vida real, é a linguagem comum, é a linguagem oral. Agora, no momento que a pessoa senta para escrever, tem que polir aquilo, tem que devolver àquilo um certo fio ideal que a linguagem deveria ter e não tem.

Acho que esse trabalho, talvez, a gente possa chamar de universal para qualquer estilo. Se a pessoa quiser fazer um texto, por exemplo, que seja todo envolto em brumas e mistério e coisas vagas e sombras, ela ainda vai precisar de palavras claras e precisas para fazer isso. A própria vagueza fica mais vaga se as palavras que a descrevem forem palavras precisas.

O contrato com o leitor

Talvez a gente possa dizer que o mais importante de tudo nesse contrato é fazer com que o leitor ou a leitora —a gente está falando de ficção— entendam aquela história como uma história verdadeira. A ficção é curiosa porque tem, na origem da palavra, a ideia de fingimento. Ficção é fingimento, mas tem que ser percebida como verdadeira.

O grande adversário disso, talvez até mais nos dias de hoje, é a tendência ao textão: a história com moral, que busca ensinar ao leitor alguma coisa ou busca um efeito que vá além do literário —um convencimento da justeza de uma causa. Tudo isso pode ter muito mérito político, sociológico etc., mas, para a literatura, não serve se, em primeiro lugar, o leitor ou a leitora não tiverem acreditado que aquilo se passou de fato com uma pessoa.

Acho que, antes de ser uma injustiça que se abate sobre uma população inteira, aquilo tem que ser uma injustiça que se abateu sobre aquele personagem. Aí, quando você consegue convencer a pessoa que está lendo disso, você tem a atenção dela mais ou menos garantida e vai ter que pisar muito na bola para perder.

Uma aldeia gaulesa

Se uma reportagem não traz nenhuma informação nova, não tem valor nenhum no jornalismo. Na literatura é um pouco diferente, porque ela tem os dois pés plantados na própria linguagem. Não está ali para passar uma informação prévia, está ali para construir um objeto de pura linguagem.

Mas, se você entender a informação como informação estética, acredito que funcione do mesmo jeito. Se você não trouxer algum sopro de novidade, se você não conseguir renovar a tradição da literatura, mesmo que minimamente, aquele objeto estético não tem por que existir.

É uma tensão permanente porque a linguagem é baseada em redundância e em repetição. Uma mensagem que seja pura novidade é puro ruído. Agora, ela não pode ser inteiramente feita de repetição. Acho que é onde a inteligência artificial generativa —uma coisa prodigiosa, uma revolução do nosso tempo— não consegue entrar, pelo menos não no seu estágio de desenvolvimento atual e talvez nunca.

Talvez ela precisasse de uma consciência de si e da capacidade de lidar com símbolos, que ainda não tem. Ela imita muito bem a linguagem humana e imita melhor que a imensa maioria dos humanos —escreve com mais correção, mais ritmo e mais coesão que a maioria imensa dos humanos. De certa forma, ela nos humilha.

Mas a tese que defendo no livro é que existe uma aldeia gaulesa, para citar “Asterix“, inexpugnável à inteligência artificial: justamente essa província da escrita literária, onde uma simples imitação não basta, porque o texto precisa se justificar por si. Se, por um lado, a paisagem textual à nossa volta está quase inteiramente dominada pela IA, por outro, acho que a gente vai estar lidando com esse núcleo, que, em termos de mercado, é muito pequeno.

A escrita literária sempre foi e é um nicho. Acho que ela tende a ficar um nicho ainda menor, com menos gente interessada nisso. É um pouco como cultivar orgânicos no mundo de alimentos industrializados: tem um valor e talvez vá ter um valor ainda maior no futuro, à medida que vá se tornando uma coisa mais rara, cultuada e valorizada por menos gente.

A maioria absoluta das pessoas não vai estar interessada nisso, porque escrever é difícil e dá trabalho. Tem uma frase que eu adoro, do escritor John Gregory Dunne: “A escrita é o trabalho braçal da mente. Um serviço, como instalar encanamento”. Você ficar ali quebrando a cabeça, costurando, serrando, colando até aquele objeto parar em pé minimamente. Isso é feito hoje em um segundo. Você pode terceirizar isso para uma máquina com muita facilidade.

Acho muito difícil que um número considerável de pessoas continue escrevendo sem ter essa necessidade de escrever. Só vai escrever quem vir na literatura ou na própria escrita um valor em si. A busca, a luta com as palavras: esse é o valor, essa é a razão pela qual você escreve. Se a razão pela qual você escreve é apenas se livrar daquele trabalho, como é para a maioria absoluta das pessoas, você não vai ter mais por que sentar para escrever.

Acho que a escrita vai deixar de ser uma habilidade. Por uma série de razões, inclusive uma crise educacional no Brasil, já se vinha escrevendo bastante mal. A partir de agora, de um momento muito em breve, não vai mais ser necessário escrever nada. Realmente nada. Não é que a escrita literária vá desaparecer, mas ela vai se tornar —e já está se tornando—, uma aldeia gaulesa, a última resistência à escrita dos robôs.

Uma nova era da escrita

Há quem ache que a literatura como nós a conhecíamos está morta e, a partir de agora, vem outra linguagem de outro tempo feita por IA. Há quem ache que a IA é só uma ferramenta que vai abrir novas dimensões para a escrita humana. Enquanto a revolução está rolando, é muito difícil saber aonde vai dar. Trata-se mais de fazer umas apostas. A minha aposta, até por uma questão geracional, é na escrita humana.

Mesmo que escritores de hoje e do futuro tentem domar a IA para os seus propósitos de expressão —mesmo que isso seja viável, não sei se é—, você só vai conseguir dominar essa ferramenta se tiver um mínimo de vivência própria da escrita. Senão, ela vai te levar para onde ela quiser e você deixa de ter o controle e ser o artista.

Não basta dar um prompt “me escreva um romance assim assado” e achar que você é o autor daquilo. Escrever é botar uma palavra depois da outra. Alguém está fazendo isso por você —e de uma forma que nem dá para chamar exatamente de escrita, porque aquilo é produzido instantaneamente, é copiado e colado do patrimônio de toda a cultura humana.

Por que não sei se vejo esse futuro de ser humano e máquina de mãos dadas escrevendo obras incríveis que não poderiam ser escritas antes? Acho que a gente está passando por uma revolução muito mais profunda que isso. Passa a ser até meio anacrônico pensar se uma IA será capaz de escrever um bom romance, porque o romance é uma forma que reflete outra era da humanidade e nada garante que vá fazer sentido escrever romances nesse novo tempo. Não sei se a linguagem de lá é essa.

Talvez ela possa imitar um romance, mas por que vai imitar um romance se vai poder te dar obras feitas de imagem, som e palavras, tudo ao mesmo tempo, uma coisa refletindo a outra? Denota até uma certa falta de imaginação a gente pensar que a questão toda é se os escritores vão perder o emprego para o robô, porque o robô vai cuidar de todas as tarefas textuais de agora em diante. No primeiro momento, é possível que essa seja a grande preocupação, mas acho que logo a gente vai estar em uma fase em que essa preocupação vai estar superada, porque sequer esse gênero textual vai fazer mais sentido.

Acho que a gente está entrando em outra era e as consequências são bastante difíceis de prever, mas não parecem apontar para uma exuberância de formas anteriores à essa era. Acho que ela vai criar suas próprias formas.

Mas, quando falo que as pessoas não vão mais escrever, a não ser que queiram muito, não acredito em momento algum que a escrita literária e a leitura literária vão desaparecer por completo. Só acho que elas vão se tornar um luxo, um hábito cultivado por muito pouca gente.

Confesso que o meu interesse por essa ferramenta é muito pequeno. Prefiro continuar escrevendo da maneira antiga, artesanal, lenta, mas acho muito difícil que as gerações que vêm depois de mim continuem tendo esse tipo de apego.

O Ilustríssima Conversa está disponível nos principais aplicativos, como Apple Podcasts e Spotify. Ouvintes podem assinar gratuitamente o podcast nos aplicativos para receber notificações de novos episódios.

O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.

Já participaram do Ilustríssima Conversa Walquiria Leão Rego, socióloga que estuda a extrema pobreza no Brasil, Diogo Bercito, que desenvolve pesquisas sobre a imigração árabe no Brasil, Cecília Olliveira, jornalista e autora de livro sobre as milícias no Rio de Janeiro Renato Ortiz, sociólogo que escreveu sobre o universo dos influenciadores digitais, José Eli da Veiga, autor de livro sobre o pensamento econômico no Antropoceno, Juliano Spyer, antropólogo que se dedica ao universo evangélico no Brasil, Arlene Clemesha, historiadora que identifica uma crise no judaísmo devido à guerra em Gaza, Sérgio Costa, pesquisador das desigualdades do Brasil, Lenin Bicudo, para quem a insatisfação com a medicina tradicional impulsiona a crença na homeopatia, Juliana Dal Piva, jornalista que escreveu sobre o assassinato de Rubens Paiva, entre outros convidados.

A lista completa de episódios está disponível no índice do podcast.

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