O Tribunal de Contas da União (TCU) julga nesta quarta-feira (14) se a Casa da Moeda do Brasil poderá reativar um contrato de R$ 1,4 bilhão por ano (R$ 2,4 bilhões em valores de hoje) suspenso em 2016, após a fornecedora confessar o pagamento de propinas.
A empresa suíça Sicpa fazia o controle e a marcação dos envases nas indústrias de bebidas, atribuição da Casa da Moeda que servia de complemento às atividades da Receita Federal, mas o serviço foi interrompido em 2016 por determinação da própria Receita.
Em 2021, a Sicpa admitiu corrupção em acordo de leniência firmado com Controladoria-Geral da União (CGU), pelo qual se comprometeu a devolver R$ 762 milhões aos cofres da estatal – uma parte já foi paga, mas a última parcela só vence em 2041.
Em abril do ano passado, a Sicpa também foi condenada pela Procuradoria-Geral da Suíça a pagar 81 milhões de francos suíços, o equivalente a R$ 511 milhões, por atos de corrupção em diversos países, incluindo o Brasil, a Colômbia e a Venezuela.
O processo no TCU foi iniciado em 2019, quando a Casa da Moeda pediu à corte de contas a reativação do contrato, alegando que a suspensão do sistema de fiscalização foi ilegal e representou prejuízos milionários à empresa.
Em 2023, o ex-superintendente jurídico da Casa da Moeda, Márcio Luís Gonçalves Dias, que responde a processo na 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro por peculato e fraude à licitação nesse mesmo caso, voltou à estatal, desta vez como diretor de Operações.
De acordo com fontes ligadas à investigação do contrato do Sicobe e à Casa da Moeda, Dias elaborou um parecer jurídico favorável à contratação da Sicpa que, nas palavras de um deles, “se destacou muito mais pelas omissões do que pelas considerações elaboradas”. O documento, por exemplo, não comprovou a realização de uma pesquisa por outras empresas no mercado e nem a inexistência de tecnologia similar nacional.
A ata do comitê de elegibilidade da Casa da Moeda que analisou a indicação de Dias, datada de abril de 2023, registra que a instituição tomou conhecimento da denúncia contra ele pelo Ministério Público Federal por peculato apresentada no fim de 2022, mas ainda assim concluiu que o ex-superintendente cumpria “os requisitos necessários” para assumir a função de diretor.
Em outubro passado, já sob o governo Lula, o TCU aprovou o restabelecimento do Sicobe. Mas a Receita não concordou e recorreu, via Advocacia-Geral da União (AGU).
No recurso, a AGU cita não só os atos de corrupção confessados pela Sicpa no contrato do Sicobe como também a “inviabilidade técnica, econômica e jurídica” do sistema, além da “incompatibilidade” com a reforma tributária em tramitação no Congresso, lançando luz sobre o racha dentro do governo Lula sobre o futuro do sistema.
No organograma da União, a Receita é hoje uma secretaria especial dentro do Ministério da Fazenda de Fernando Haddad. O órgão diz que o sistema da Casa da Moeda é antiquado e desatualizado e incompatível com as premissas do programa Rota Brasil, que foi anunciado em 2022 e tem entre suas metas ampliar a rastreabilidade de produtos como as bebidas com a participação dos consumidores, e a remodelação no sistema tributário.
Na prática, caso seja chancelado pelo TCU, o Sicobe voltaria a ser operado pela mesma companhia que admitiu atos de corrupção entre seus quadros no contrato do Sicobe.
Fontes ligadas à Casa da Moeda estimam que a retomada do sistema custará de 350 a 400 milhões de reais e afirmam que a pressão se deve a um lobby intenso da empresa suíça e do grupo político que hoje dá as cartas na estatal, ligado ao PT e ao deputado federal Lindbergh Farias (RJ).
A equipe do blog apurou que o CEO da empresa, Bruno Queiroga, também tem se movimentado em Brasília para viabilizar o restabelecimento do Sicobe. Queiroga é um dos empresários que integram o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o chamado Conselhão do Lula.
A despeito da colaboração com a CGU, a Sicpa manteve outros serviços junto à Casa da Moeda, como o sistema Scorpios, de fiscalização de cigarros, e o fornecimento de tintas especiais para mecanismos de segurança em cédulas – contratos que somam R$ 149,3 milhões, segundo o Portal da Transparência.
A estatal tenta desde 2016 reverter a suspensão do Sicobe alegando prejuízos milionários, mas a articulação ganhou força desde o retorno do PT ao poder, em 2023.
A leitura interna é que a iniciativa de tentar retomar o contrato serve também para proteger esses outros contratos. A avaliação entre técnicos da Casa da Moeda ouvidos pela equipe da coluna, se o contrato para a fiscalização de bebidas for encerrado em definitivo, a estatal teria que cancelar esses outros também.
O empenho dos dirigentes da estatal em retomar o contrato sob o comando da empresa tem provocado grande apreensão entre servidores e ex-dirigentes, que preferem se manter sob reserva pelo temor de retaliações. O motivo, além da interferência política, é a retomada de um sistema considerado ineficiente e anacrônico com o passivo do histórico de corrupção da Sicpa.
A expectativa entre eles é que, caso decida pelo restabelecimento do sistema, o Tribunal de Contas apresente uma resolução intermediária como indicar a necessidade de contratação de uma nova empresa para operá-lo, como defendeu a área técnica da corte contábil.
O imbróglio da Casa da Moeda permaneceu congelado sob o governo Jair Bolsonaro e só veio à tona depois que a Casa da Moeda entrou na partilha de cargos na gestão Lula. Na distribuição de cargos, integrantes do Sindicato dos Moedeiros ascenderam a postos de chefia. Além de Márcio Luís Gonçalves Dias (Operações), Leonardo Abdias, assumiu a diretoria de Inovação. Ambos seriam indicações de Lindbergh.
Dias chegou a ser indicado pelo governo Lula para a presidência da estatal, mas a nomeação caiu após a revelação de que ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por peculato e fraude à licitação no âmbito da operação da PF que investigou justamente o contrato do Sicobe e a Sicpa. Dias era superintendente jurídico quando o negócio foi fechado
Ele acabou substituído por Sérgio Perini, funcionário de carreira indicado pelo deputado federal Lindbergh Farias para dirigir a estatal. Foi ele quem deu sinal verde para as indicações dos sindicalistas.
Em agosto de 2023, Lindbergh foi um dos únicos parlamentares a comparecer a uma audiência pública realizada pela Receita Federal para discutir o Rota Brasil. Na ocasião, o deputado defendeu o modelo do Sicobe.
Uma foto publicada nas redes oficiais da Casa da Moeda mostram o petista ao lado de autoridades da estatal como Leonardo Abdias, Márcio Luís Gonçalves Dias e o presidente, Sérgio Perini, além do secretário da Receita Federal, Robson Barreirinhas.
Questionada pela equipe do blog sobre as irregularidades confessadas pela companhia suíça no acordo de leniência e se cogita contratar outra empresa para administrar o Sicobe, a Casa da Moeda se limitou a dizer que “não faz parte do acordo de leniência firmado pela Sicpa” e que “não teve acesso ao processo, apenas é beneficiária do valor acordado entre as partes”.
A empresa pública não se manifestou sobre as críticas da Receita Federal ao sistema e os temores de que seu eventual restabelecimento prejudique a reforma tributária.
Procurada, a Sicpa contradisse o que subscreveu no próprio acordo de leniência firmado com a CGU. A empresa alega não ter confessado “qualquer ato de corrupção” e que, “em decorrência das decisões do Judiciário, o acordo poderá ser revisto”. À Controladoria-Geral da União, a companhia disse ter confirmado em apuração interna o pagamento de propinas entre 2009 e 2015 e se comprometeu a melhorar seu programa de integridade.
Ainda sobre o Sicobe, a empresa disse que o sistema é o maior programa de rastreabilidade do mundo e que o contrato com a Casa da Moeda já foi validado por “três instâncias do judiciário brasileiro (Justiça Federal, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal), já com trânsito em julgado”.
O deputado Lindbergh Farias não retornou o contato da equipe da coluna. O espaço permanece aberto.
O maquinário responsável pela marcação das embalagens de bebidas, que é instalado na linha de produção das fabricantes, está abandonado há oito anos nas dependências da Casa da Moeda no distrito industrial de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, a um quilômetro da sede nacional da Sicpa, instalada do outro lado da via em que a estatal está situada.
Interlocutores da estatal avaliam que, se retomado, o sistema exigirá uma adaptação das máquinas às novas tecnologias empregadas pela indústria e também a manutenção do equipamento, cujo estado é desconhecido.