Mais uma vez, o bolsonarismo conseguiu pautar o debate público em seu favor. Nesta semana, o Tribunal de Contas da União, o TCU, decidiu que Lula não estava obrigado a devolver um relógio que ganhou da empresa Cartier durante seu primeiro mandato como presidente, há quase 20 anos.
A decisão estapafúrdia foi em resposta a uma representação aberta pelo deputado federal bolsonarista Sanderson, do PL do Rio Grande do Sul, que questionou uma suposta apropriação indevida por Lula.
Oito ministros, entre eles alguns bolsonaristas de carteirinha, como Augusto Nardes, seguiram a tese vencedora redigida pelo ministro Jorge Oliveira, um homem de confiança da família Bolsonaro.
Antes de virar ministro do TCU, esse milico da reserva da PM do Distrito Federal já havia trabalhado nos gabinetes de Eduardo e Jair Bolsonaro na Câmara e, depois, como secretário-geral da Presidência da República.
LEIA TAMBÉM:
Liderado por essa turma, o TCU então decidiu que nem Lula nem nenhum dos ex-presidentes precisam devolver nada. O tribunal agora entende que, como não existe uma legislação específica sobre o assunto, ninguém pode ser punido ou obrigado a devolver os presentes.
Obviamente, o tribunal estava mirando no caso Bolsonaro. Logo após a decisão, os advogados de Bolsonaro comemoraram e anunciaram que vão usá-la para embasar o argumento de um pedido de arquivamento do inquérito que investiga o caso das joias sauditas pelo ex-presidente.
Passo a passo da manobra
Bolsonaro saiu do poder, mas ainda há tentáculos do bolsonarismo nos órgãos públicos. O encadeamento dos fatos torna tudo bastante óbvio. Um parlamentar bolsonarista entra com uma ação sem pé nem cabeça no TCU; ministros bolsonaristas matam no peito e passam a bola açucarada para os advogados de Bolsonaro tentarem livrar a cara dele.
Essa tentativa de equiparar dois episódios de naturezas completamente distintas é uma canalhice.
Trata-se de uma grande manobra para tentar criar um ambiente jurídico favorável à absolvição de Bolsonaro e jogar areia nos olhos da opinião pública ao equiparar o recebimento do presente de Lula com o do ex-presidente.
Muitos dos nossos colunistões da grande imprensa ajudaram a alimentar a tese bolsonarista ao tratar de forma parecida duas situações completamente distintas. Lula respeitou a legislação vigente à época.
Falsa equivalência e doisladismo
Goste-se ou não do fato de um presidente aceitar um presente de R$ 60 mil de uma empresa — eu não gosto — o fato é que Lula não fez rigorosamente nada de ilegal. Bolsonaro ganhou milhões em joias de outro chefe de estado, e seus cupinchas tentaram entrar com elas ilegalmente no Brasil.
Depois, as venderam e, mais tarde, tendo plena consciência de que cometiam crimes, tentaram recomprá-las. Um relatório da PF afirma que Bolsonaro tinha total conhecimento de toda a operação criminosa.
Ele e mais onze foram indiciados pela polícia pelos crimes de peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro. Essa tentativa de equiparar dois episódios de naturezas completamente distintas é de uma canalhice própria do esgoto da extrema direita, mas que ganhou adeptos entre profissionais de imprensa que gostam de vestir o terninho da isenção e praticar o famoso doisladismo.
A manchete “Entenda por que Lula vai ficar com relógio e até Bolsonaro pode ter joias de volta”, do Estadão, é um exemplo de como se criou a sensação de que Lula e Bolsonaro fizeram a mesma coisa. Ela também ajuda a diminuir a percepção da gravidade dos crimes cometidos por Bolsonaro.
Apesar da comemoração bolsonarista, o fato é que a decisão de um tribunal de contas não altera a situação do ex-presidente na esfera penal. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, é quem decidirá se Bolsonaro se tornará réu.
Pelo excesso de provas dos atos investigados, a tendência é que Gonet abra a ação penal. Caso isso não aconteça, talvez estaremos diante de um novo acordo nacional, com TCU, com PGR, com tudo — o que me parece bastante improvável.
Caso vire réu, Bolsonaro será julgado pelo STF, o tribunal que dará a palavra final sobre a interpretação das leis e da Constituição. Várias decisões e interpretações do TCU já foram derrubadas pelo Supremo.
Juridicamente, a situação de Bolsonaro não deve mudar, mas, do ponto de vista político, a decisão do TCU é uma vitória. Ela ajudou a arrastar o atual presidente da República para a mesma lama de Bolsonaro e a legitimar a tese de defesa do ex-presidente.
Lula: ‘me sentindo usado pelo TCU’
Não foi à toa que Lula ficou irritado e disse ter “se sentido usado pelo TCU” — que foi exatamente o que aconteceu. A advocacia-geral da União recorrerá da decisão ao próprio TCU e, se necessário, depois ao STF. Para tentar limitar o estrago, Lula também afirmou que devolverá o relógio à União.
A operação para livrar Bolsonaro da cadeia está em campo e envolve muitos atores.
Não acho que esse seja um bom caminho. A devolução do relógio seria bem-vinda em outro momento, não agora que o bolsonarismo colocou a faca no seu pescoço. Isso reforçará a falsa narrativa de que Lula cometeu uma ilegalidade e a percepção de que os graves crimes de Bolsonaro não foram tão graves assim.
Bastou mexer alguns pauzinhos para o bolsonarismo colocar Lula nas cordas do noticiário mais uma vez. O TCU bolsonarista encheu as mamadeiras de piroca para que a imprensa corporativa pudesse distribuí-las.
Conseguiram a façanha de transformar um caso de uso de joias para lavar dinheiro de corrupção internacional do ex-presidente em um problema do atual presidente. A operação para livrar Bolsonaro da cadeia está em campo e envolve muitos atores.
Essa é uma missão quase impossível, já que são muitos os inquéritos, todos recheados de provas. Mas é bom que os democratas liguem o sinal de alerta. Certamente há outras operações desse tipo engatilhadas. O roteirista do Brasil sempre pode nos surpreender.
URGENTE
Antes de seguir com seu dia, pergunte a si mesmo: Qual a chance da história que você acabou de ler ter sido produzida por outra redação se o Intercept Brasil não a tivesse feito?
Pense em como seria o mundo sem o jornalismo do Intercept. Quantos esquemas políticos, abusos judiciais e tecnologias distópicas permaneceriam ocultos se nossos repórteres não estivessem lá para revelá-los?
O tipo de reportagem que fazemos é essencial para a sociedade, mas não é fácil, nem barato. E é cada vez mais difícil de sustentar.
O Intercept é uma redação independente e sem medo. Por isso, está sob ataque da extrema direita e de seus aliados das big techs, da política e do judiciário.
Hoje, estamos lutando contra mais de 20 ações judiciais e novos processos surgem todos os meses. Precisamos de ajuda.
Não temos sócios, anúncios ou patrocinadores empresariais. Sua doação mensal é o que nos permite continuar incomodando os poderosos.
Apoiar é simples e não precisa custar muito: apenas R$ 10 por mês é tudo o que é preciso para defender o jornalismo em que você acredita.
Toda colaboração conta. Você pode nos ajudar hoje?