
A psicologia costuma explicar que ninguém atravessa a vida ileso. Todos experimentam perdas, rupturas, dores e recomeços.
Mas algumas trajetórias deixam claro o que a literatura científica descreve desde os anos 1950, quando a psicóloga alemã-americana Emmy E. Werner (1929-2017) iniciou o Estudo de Kauai, marco mundial no entendimento da resiliência humana: a capacidade de se reorganizar, reconstruir significado e seguir adiante mesmo quando tudo ao redor desmorona.
— É transformar a dor em potência — resume a psicóloga Valquíria Rosa, especialista em avaliação psicológica e conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS).
No caso de Rogerio Peres Cunha Guello, 61 anos, policial penal aposentado, transplantado de medula e hoje triatleta, palestrante motivacional e intérprete de Sidney Magal (ator e cantor brasileiro) em lares geriátricos, a resiliência não é conceito acadêmico, é biografia.
O riso fácil, a fala espraiada e a energia quase adolescente não sugerem a história recente de um câncer agressivo.
Mas bastam alguns minutos de conversa para perceber que ali está alguém que atravessou um terremoto pessoal e saiu não apenas vivo, mas ampliado.
Quando o chão cai
Antes da doença, Rogerio costumava nadar como prática esportiva. Porém, perto dos 50 anos, uma depressão o acometeu. Foi justamente a natação que o salvou.
Ele treinou, competiu, reconquistou forma física e, em 2019, tornou-se campeão sul-brasileiro, eleito segundo melhor atleta de sua categoria. No auge, porém, veio o diagnóstico que tirou-lhe o chão.
— Meu mundo desabou. Quando tu recebes o diagnóstico, nem o super-homem aguenta. Chorei e fiz aquela pergunta que todo mundo faz: “por que eu? Se sou um cara bom?”. Hoje eu mudei essa pergunta. Ela é: “o que eu preciso aprender com tudo isso?” — relata.
O mieloma múltiplo (câncer que se desenvolve na medula óssea) chegou em junho de 2020, já na esteira das restrições da pandemia, e trouxe com ele o início de um tratamento desgastante: 48 sessões de quimioterapia e 18 dias de internação para o transplante de medula.
Ao dar o diagnóstico, a médica que tratava Rogerio fez uma afirmação que se tornaria bússola e viraria quase um mantra interno: enfrentar a doença exigiria tanto do corpo quanto da mente.
— Jamais vou esquecer o que a minha hematologista disse: “Rogerio, a partir de hoje, é 50% medicina e 50% cabeça. O teu psicológico não pode cair de jeito nenhum”. Então eram duas coisas: ou eu encarava de frente ou desistia de viver — explica.

Durante o período de isolamento total no hospital, sem poder receber visitas, Rogerio encontrou um modo muito particular de manter a sanidade e arrancar sorrisos dos profissionais de saúde. Criou Maria Vitória, uma personagem inventada para ser sua “acompanhante”.
A ideia nasceu ao olhar para os tubos e suportes médicos aos quais estava conectado. A partir dali, usando criatividade e humor como ferramentas de resistência emocional, Rogerio transformou o ambiente hospitalar em algo mais leve.

— Eu ficava com um suporte de soro e um cateter ligado em mim 24 horas. Disse: “vou fazer minha acompanhante”. Lembrei do (ex-BBB) Bambam, que criou a Maria Eugênia, e criei a Maria Vitória: Maria pela minha mãe e Vitória que eu iria conseguir com o transplante. E virou uma febre, ganhou até crachá. Todo mundo ia lá tirar foto — conta.
Reconstruir o sentido da vida
Se a doença abriu uma fenda, foi na recuperação que Rogerio reconstruiu o sentido da própria vida. É aqui que a psicologia encontra sua narrativa: transformar dor em potência, fragilidade em propósito e sobrevivência em missão.
A psicóloga Valquíria explica que a experiência do câncer atravessa corpo, mente, relações e identidade. E exige, quase inevitavelmente, uma reconstrução profunda.
— O tratamento oncológico, especialmente com transplante, demanda uma reorganização total da vida. A resiliência não é ausência de medo nem força de ferro. Ela é um processo que se desenvolve durante a experiência de adoecer, de esperar, de sentir dor e de recomeçar — destaca.

A especialista lembra que encontrar sentido na experiência é um dos pilares da resiliência. Para muitos pacientes, isso surge como uma espécie de despertar: a percepção de que viviam no automático, de que as prioridades estavam desalinhadas.
Para alguns, esse sentido está na fé. Para outros, nas relações familiares, no desejo de ver netos crescerem, no apego ao cotidiano ou na simples vontade de continuar existindo.
— O sentido não elimina o sofrimento, mas torna-o mais suportável. Isso é profundamente terapêutico — reforça Valquíria.
Outro aspecto essencial é a rede de apoio: família, amigos, equipe multidisciplinar, profissionais de saúde e até outros pacientes.
Valquíria ressalta que enfrentar o câncer sozinho é praticamente impossível, e que o suporte, mesmo quando não vem da família, pode emergir no ambiente hospitalar.
— Quando essa rede funciona, o paciente se sente menos sozinho e mais capaz de enfrentar o tratamento. E é importante lembrar: resiliência não é não chorar. É reconhecer o sofrimento e, ainda assim, continuar caminhando — diz.
Novo significado

Há pacientes que vivem o diagnóstico como um marco: dali para frente, tudo ganha um novo significado. A psicóloga afirma que isso se relaciona ao chamado “crescimento pós-traumático“, quando o trauma abre espaço para transformações internas profundas.
— Muitos pacientes veem esses 50% mencionados pela médica de Rogerio como uma segunda chance. Não significa que a doença tenha sido boa, mas que ela gerou uma mudança capaz de transformar dor em missão. É o que ele faz: leva humor, arte e presença para idosos, motivando outras vidas — explica.
Rogerio incorporou essa segunda vida com intensidade. À medida que recuperava forças, além de se tornar triatleta e participar de competições voltadas a transplantados, retomou um sonho antigo: subir ao palco.
Admirador de Sidney Magal desde criança, ele aprendeu os trejeitos do ídolo, vestiu peruca, preparou figurino e passou a fazer apresentações em festas, especialmente em lares geriátricos.

Ali, música, memória afetiva e alegria se misturam, e ele encontra um novo propósito.
— Eu gosto dele (Magal) desde criança. Um dia me apresentei numa festa dos anos 1980 e começaram os convites. Quando toca “Sandra Rosa Madalena”, ninguém fica parado — brinca.
Para a psicologia, essa virada tem nome: ressignificação. A vida que antes era guiada pelo trabalho como policial penal ganhou novas camadas, novas prioridades, novas formas de existir. Não se trata de romantizar o adoecimento, e Valquíria reforça isso.
— Não é obrigação ser resiliente. O tratamento tem altos e baixos, a sociedade associa câncer à morte, e isso pesa muito. Especialmente depois dos 60 anos, quando perdas se acumulam. Cada paciente tem sua trajetória, seu tempo e seu limite. E está tudo bem — pontua.
Mas quando a dor encontra espaço para se transformar, resultados como o de Rogerio emergem. Ele próprio diz que seu futuro é continuar ajudando pessoas, inspirando e compartilhando o que aprendeu.
— Quero inspirar as pessoas a jamais desistir. Enquanto tiver 1% de chance, é preciso 99% de fé e esperança. Deus dá as maiores batalhas aos melhores soldados — finaliza.

