A inteligência artificial vem se espalhando rapidamente e já está presente em diversos aplicativos e plataformas utilizados por educadores e estudantes, tanto na escola quanto em casa. No entanto, o modo como esse acesso ocorre é desigual, uma vez que há regiões com infraestrutura deficiente e ausência de conexão à internet. Com o objetivo de combater esse problema, a Ufal (Universidade Federal de Alagoas) lançou, na última segunda-feira (14), o Instituto de Inteligência Artificial na Educação Desplugada (IA.Edu) e a primeira Cátedra Unesco voltada ao uso de inteligência artificial desplugada — uma solução concebida no Brasil especificamente para contextos educacionais com baixa ou nenhuma conectividade.
O instituo IA.Edu surge como centro de excelência e articulação entre academia, governos e sociedade civil. Seu objetivo é construir políticas públicas e práticas educacionais éticas e eficazes para o uso da IA nos ensinos básico, médio e superior. Já a Cátedra Unesco da Ufal, fruto do programa UNITWIN (sigla em inglês para parceria e colaboração entre universidades), coloca a universidade brasileira como integrante de uma rede internacional de cooperação entre universidades e centros de pesquisa por meio do intercâmbio de conhecimento.
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Ambas as propostas têm como foco o desenvolvimento de soluções escaláveis e acessíveis, como o projeto de inteligência artificial offline criado pelo NEES (Núcleo de Excelência em Tecnologias Sociais) da Ufal. Como exemplo, já foi implementado um aplicativo que usa IA para corrigir automaticamente textos manuscritos – os professores fotografam as redações com o celular e recebem a correção automatizada diretamente no aplicativo.
A preocupação do projeto em combater as desigualdades educacionais reflete-se nos seguintes dados: embora 88,5% das escolas brasileiras (122.122) tenham acesso à internet, apenas 54,1% delas (74.558) contam com redes sem fio (wi-fi), o que limita o uso efetivo de ferramentas digitais em sala de aula. Além disso, 15.792 escolas permanecem totalmente desconectadas. Os dados são do Medidor Educação Conectada, ferramenta desenvolvida pelo NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), em parceria com o MEC (Ministério da Educação), para monitorar a qualidade da conexão à internet nas escolas públicas.
IA e as lacunas educacionais
Durante o lançamento realizado no prédio do Observatório da Rede de Inovação para Educação Híbrida, do Nees (Núcleo de Excelência em Tecnologias Sociais), em Maceió, o reitor da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), Josealdo Tonholo, destacou que as ações de pesquisa e desenvolvimento em inteligência artificial na educação devem ser direcionadas prioritariamente àqueles que costumam ser invisibilizados e que, por isso, têm acesso mais tardio às tecnologias.
Josealdo citou a experiência vivida durante a pandemia de Covid-19 como um exemplo dessa desigualdade. Naquele período, o ensino remoto não representava um modelo efetivo de educação a distância, mas sim uma alternativa emergencial, improvisada e precária, adotada como forma de “quebrar o galho” até a retomada das aulas presenciais. Estudantes em situação de vulnerabilidade social foram os mais prejudicados. Em reportagens do Porvir durante a fase de isolamento social, professores contaram que crianças e adolescentes muitas vezes precisavam compartilhar um único telefone celular entre os irmãos para conseguir acompanhar as atividades escolares, o que escancarou as limitações de acesso e a desigualdade digital enfrentada por grande parte da população brasileira.
“Estamos, portanto, tratando de um tema profundamente sensível e absolutamente brasileiro — especialmente nordestino e periférico no que diz respeito à aplicação —, mas central em termos de relevância e impacto. Falamos aqui de inteligência artificial na educação desplugada, que contempla 80% do mundo, e não apenas os 20% privilegiados”, disse.
Papel da IA desplugada na educação
O professor Ig Ibert Bittencourt, que atua na Ufal, provocou os presentes a pensarem em um desenvolvimento de inteligência artificial que faça sentido a todos, considerando a profunda desigualdade de acesso à conectividade e infraestrutura nas escolas e defendeu que soluções importadas não funcionam em realidades tão diversas como as brasileiras. “Cerca de 75% dos professores da educação básica no Brasil não possuem computador pessoal para uso profissional”, disse.
Segundo ele, há dois riscos: a IA ampliar desigualdades ou o Estado não conseguir usá-la. Por isso, propôs um novo olhar, centrado no protagonismo nacional e na criação de tecnologias pensadas para o contexto local, com potencial de inspirar outros países do Sul Global.
Por fim, explicou que o Instituto IAEDU atuará com incidência política para fortalecer políticas públicas e programas que gerem impacto real, começando com a construção de uma visão compartilhada e avançando para ações concretas dentro da filosofia de uma IA desplugada. “Essa realidade complexa, por mais desafiadora que seja, também nos oferece uma oportunidade única de inovar e gerar impacto social real”.
Em sua fala, Seiji Isotani, professor de computação e tecnologias educacionais da USP (Universidade de São Paulo) e cofundador do IA.Edu, analisou os desafios da inteligência artificial na educação. “Uma das nossas maiores inquietações é garantir que os benefícios da inteligência artificial cheguem às regiões onde a infraestrutura é praticamente inexistente, onde faltam recursos humanos bem capacitados, onde muitas crianças ainda não têm aquele brilho nos olhos quando se fala em tecnologia, justamente porque nunca tiveram acesso a ela”, assegurou o professor.
Seiji Isotani, professor de computação e tecnologias educacionais da USP (Universidade de São Paulo), cofundador do Nees e do Instituto IA.Edu, enfatizou a importância de usar a tecnologia como um mediador integrado ao processo educacional, não como um elemento isolado.
O professor descreve um cenário no qual agentes virtuais podem agir como tutor ou orientador personalizado para crianças que não têm acesso a suporte especializado, ajudando em questões como aprendizado, carreira e até bem-estar (ex.: sugerir descanso quando necessário). Além disso, afirmou, a IA pode adaptar conteúdos para alfabetização e numeracia ao cotidiano do aluno, aumentando sua motivação e conexão com o aprendizado, algo crítico diante dos resultados estagnados no Pisa (avaliação internacional que mede conhecimentos de alunos de 15 anos).
Seiji também considera importante a colaboração com professores para a evolução do projeto, com o objetivo de posicionar o Brasil como um potencial líder global em inteligência artificial desplugada e, futuramente, possibilitar a replicação da iniciativa em outros países. Ao concluir, o cofundador do Nees ressaltou a maturidade das parcerias atuais e a experiência ao lado do professor Ig que remonta 2007.
“Desde o início acreditamos que seria possível alcançar nossas crianças e melhorar a qualidade da educação usando a tecnologia como um elemento intermediador, não como algo isolado, mas como parte integrante do processo educativo. Esse, para mim, é o grande desafio que enfrentamos na educação: ao mesmo tempo em que faz sentido pensar a educação sem tecnologia, também não faz sentido deixar a tecnologia de fora. Esse conflito, essa tensão, nos acompanha todos os dias”, disse.
Alice Carraturi, doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP e também cofundadora do instituto, reforçou o propósito do IA.Edu. “A gente percebeu que a inteligência artificial deixou de ser apenas uma área da computação ou das tecnologias digitais, ela se tornou uma verdadeira onda. E, diante disso, pensamos: queremos estar na crista dessa onda, né? Foi com esse espírito que criamos o IA.Edu, uma spin-off do Nees, que já vinha desenvolvendo ferramentas e tecnologias voltadas para a educação. A ideia é que essa inteligência artificial, quando aplicada à educação, possa de fato trazer apoio e contribuir significativamente para a educação básica pública”, concluiu a pesquisadora.
O evento na Ufal também teve a participação da coordenadora-geral da Comissão Nacional do Brasil para a Unesco, Maria Clara Nocchi; a reitora honorária da Ufal, Ana Dayse Dorea; a diretora-presidente da Fundação Telefônica Vivo, Lia Glaz; a especialista em educação e ex-diretora Global de Educação do Banco Mundial, Claudia Costin; e o diretor-presidente da Fundação Tellescom, Américo Mattar.
* Com informações da Ufal