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uma análise a partir da Doutrina Social da Igreja – REPAM

*De Roma, Luís Rogério.

Caros leitores,

proponho-lhes como reflexão para o artigo desta semana, neste blog, falarmos sobre Ética, Inteligência Artificial, Doutrina Social da Igreja e Papa Francisco. 

Adianto-lhes que este jovem que vos escreve, apesar de nascer no século XXI, é um analfabeto tecnológico, não sabendo lidar muito bem com os algoritmos, mas que lhes propõe uma reflexão à luz daquilo que nos últimos tempos tem sido a palavra oficial da Igreja sobre o assunto. Não é aqui o lugar para apresentar uma visão oficial do Magistério da Igreja sobre o tema, de enorme complexidade, e que tem experimentado mudanças extremamente rápidas. Mas simplesmente fazer ressoar a voz do Papa Francisco na sabedoria que ele lança sobre o tema e assim nos guiando nesses tempos. 

A Igreja nunca deixou de proferir a palavra que lhe compete sobre determinados assuntos nos tempos e os mais variados caminhos da História. E assim é com as novas tecnologias. A Igreja considera que o desenvolvimento tecnológico é muito relevante e precisa ser acolhido. Mas ressalta a necessidade do debate sobre o tema e permanece atenta às possíveis consequências adversas à humanidade. O célebre discurso do Papa Francisco na cúpula do G7 sobre IA, no qual o Papa pediu “uma Ética do Algoritmo”, foi o ponta pé inicial sobre a atenção que devemos dar a esse tema, o qual ecoou em toda a Igreja. A Nota Antiqua et Novaelaborada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé e o Dicastério para a Cultura e Educação, apresentou-nos uma profunda análise sobre a relação entre inteligência artificial e inteligência humana, enfatizando a necessidade de um desenvolvimento ético e orientado para o bem comum, e destacou oportunidades, mas também alertou para os riscos éticos e antropológicos dessa tecnologia. 

A Pontifícia Academia das Ciências Sociais recentemente realizou o Workshop “Inteligência Artificial, Justiça e Democracia”, na qual explorou os impactos multifacetados da IA, com especial atenção aos domínios da justiça e à prática da democracia. E na última semana o Vaticano hospedou o Workshop “Riscos e Oportunidades da IA para Crianças: Um Compromisso Comum para Proteger as Crianças”, organizado pela Pontifícia Academia de Ciências, que reuniu representantes da indústria de tecnologia, instituições religiosas, academia, sociedade civil, crianças e jovens e sobreviventes de abuso para abordar a questão urgente do uso seguro e ético da IA para o bem-estar das crianças, e enfatizou a responsabilidade compartilhada de todas as partes interessadas de agir de forma colaborativa e eficaz dentro de suas áreas de influência para proteger as crianças.

E tais iniciativas não são para demonizar a IA, mas de observar suas potencialidades e seus riscos, para buscar um bom uso dessa tecnologia para a sociedade. As áreas impactadas pela IA na nossa sociedade são muitas: a saúde, o direito, a educação, entre tantas outras. A IA nos pode auxiliar a desperdiçar menos recursos, otimizar processos, salvar vidas por meio de novos tratamentos e muitas outras coisas. Mas junto com todos esses benefícios, igualmente numerosas são os tipos de questões éticas que tem sido levantadas em relação ao uso da IA: privacidade de dados, vieses discriminatórios, impacto ambiental, falta de explicabilidade sobre os algoritmos, concentração de poder nas mãos de algumas entidades… tudo isso dá-nos a certeza de que a reflexão sobre esses assuntos é urgente. 

Vocês se recordam do recente comercial da Volkswagen no Brasil, no qual, usando a IA, colocaram a Elis Regina e sua filha, Maria Rita, cantando lado a lado, mesmo Elis estando morta a mais de 40 anos? E o comercial foi uma coisa chocante, de tão realista que era. Se a IA pôde fazer isso, ela não poderia produzir provas falsas para incriminar uma pessoa?

Elis Regina no novo comercial da VW. IA nos 70 anos de Brasil

Podemos fazer um uso da IA que é bom ou ruim. O Papa Francisco, em sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2024, disse uma coisa muito verdadeira: “cada coisa nas mãos do homem torna-se oportunidade ou perigo, segundo a orientação do coração”. 

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja faz uma síntese do que a Igreja pensa do ponto de vista técnico e tecnológico. Ele reconhece que os resultados da ciência e da técnica são em si mesmos positivos, pois configuram-se como sinais e consequências da própria grandeza divina, tendo o homem como continuador da própria criação (CDSI 456). O Compêndio frisa que “é preciso manter uma atitude de prudência e examinar com olhos atentos todo esse desenvolvimento tecnológico” (CDSI 458).

O mesmo Compêndio sintetiza o Ensino Social da Igreja em cinco princípios, a partir dos quais podemos determinar os critérios para nortear a utilização da Inteligência Artificial:

  • Dignidade da pessoa humana: deve-se garantir, de forma efetiva, a privacidade e a segurança dos dados de cada pessoa.
  • Bem comum: o combate ao atual “capitalismo de vigilância”, que explora com afinco a própria natureza humana para transformá-la em previsões do comportamento para fins comerciais. Trata-se, portanto, de um direito fundamental voltado à imposição de limites à maneira como informações são processadas e negociadas, e ao esforço por dar mais poder às pessoas no controle do fluxo de informações gerado por elas próprias, mas manejados por grandes corporações.
  • Destinação universal dos bens: os bens da Criação devem ser acessíveis a todos. Em um mercado marcado por grandes corporações que detêm o controle de praticamente todo o cenário digital global, como fazer com que a destinação universal dos bens seja efetivo e esteja ao alcance de cada pessoa?
  • Subsidiariedade:  expressa a ideia segundo a qual o Estado não deve assumir aquilo que outras instituições sociais mais próximas ao cidadão, como sindicatos, associações, famílias, entre outras, têm condições de fazer. Assim, como falar de subsidiariedade quando se vive um período de “colonialismo de dados”, minerados em plataformas digitais com pouquíssimos controles externos, nem mesmo do Estado?
  • Solidariedade: a exclusão digital se configura pelo fato de o acesso a tais tecnologias ser restrito a uma pequena parcela da população mundial, seja por falta de acesso material, logístico ou financeiro, seja por falta de letramento digital.

Não podemos nos esquecer de um documento fundamental em todo o processo de digitalização, a carta encíclica Caritas in Veritate, do Papa Bento XVI, na qual ele apontou alguns ensinamentos relacionados ao desenvolvimento tecnológico. Ratzinger reconhece a técnica como um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade (CV 69), mas destacava que o desenvolvimento tecnológico pode induzir à ideia de autossuficiência da própria técnica, quando o ser humano, interrogando-se sobre o “como”, deixa de questionar os muitos “porquês” pelos quais é impelido a agir. É preciso, portanto, uma apreciação moral e ética do desenvolvimento tecnológico. Mas não é suficiente presumir, por parte de quem proteja algoritmos e tecnologias digitais, um emprenho em agir de modo ético e responsável. É preciso reforçar ou, se necessário, instituir organismos encarregados de examinar as questões éticas emergentes e tutelar os direitos de quantos utilizam formas de inteligência artificial ou são influenciados por ela.

O tema da IA é ambivalente: muitos ficam entusiasmados quando imagina-se o progresso que pode advir com ela, mas, ao mesmo tempo, muitos ficam amedrontados quando constata-se o perigo inerente ao seu uso. Eu particularmente me encontro no segundo grupo. 

A Nota Antiqua et Nova, dentre os temas importantes que ela trouxe (que vocês teriam que lê-la pois não conseguiria resumir tudo neste artigo), reforçou uma coisa a meu ver muito importante: a IA deve ser vista como ferramenta e não como uma forma de inteligência similar a humana. A Inteligência Artificial é, antes de tudo e tão somente, um instrumento. É certo que as máquinas têm uma capacidade imensamente maior do que os seres humanos de memorizar os dados e relacioná-los entre si, mas compete ao homem, e só a ele, descodificar o seu sentido. No entanto é preciso acordar o homem desta hipnose em que caiu devido ao seu delírio de onipotência, crendo-se sujeito totalmente autônomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura. Ao ser humano de nada aproveitará um mar de dados se naufragarmos em meio a eles por não usá-los com sabedoria.

Em um momento no qual o mundo se divide entre a fascinação e o terror diante dos avanços da IA, impressiona que uma visão equilibrada e propositiva sobre um tema tão atual possa vir de Francisco, um senhor de 88 anos. É a sabedoria que vem de um ancião, lembrando-nos a contribuição que os idosos podem dar, e que o Papa sempre faz questão de recordar em seus discursos. 

A Igreja tem um papel na luta contra a exploração gerada pela IA, e o Papa apresenta uma visão equilibrada da mesma. E nessa conjuntura social atual, é exatamente ele a quem, em primeiro lugar, devemos seguir. Pois, da minha parte, não saberia dizer qual seria o futuro do Homo Sapiens na era da inteligência artificial.

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