
Arte: EC (gerada com IA)
Arte: EC (gerada com IA)
Em reportagem recente, o The Wall Street Journal conta como uma clínica médica estadunidense já proporciona aos seus clientes a experiência de uma consulta virtual onde o médico – fisicamente situado a milhares de quilômetros – se materializa em frente ao paciente na forma de um holograma. Segundo o artigo, essa nova tecnologia estaria um passo adiante da já conhecida telemedicina, na qual médicos e pacientes se “comunicam” através de telas de computador ou de um smartphone. A matéria ressalta que por cerca de 50 mil dólares essa tecnologia pode fazer parte de qualquer serviço de saúde. Por esse valor – e considerando o andar apressado das tecnologias médicas – é de supor que em pouco tempo poderemos escolher até mesmo a aparência de nossos médicos. Em breve poderemos marcar uma consulta com um médico com a aparência de, digamos, um Brad Pitt, cujo discurso técnico seja definido por algum tipo de inteligência artificial (IA). Resta-nos saber se é isso que desejamos para nossos sistemas de saúde e se estamos de fato evoluindo ou, como diria o saudoso Konrad Lorenz, apenas demolindo o que restava de humano em nós.
Quem considera bizarra essa ideia deveria saber que o futuro da medicina pode ser ainda pior e que o famigerado Dr. Oz – aquele mesmo que apresentava um programa de TV estúpido e que agora é nada menos que o Secretário de Estado responsável pelo orçamento trilionário do sistema de saúde estadunidense, do qual depende a vida de muitos milhões de pessoas – acaba de defender em uma reunião com sua equipe que os médicos de carne e osso sejam substituídos por avatares alimentados por IA. Conforme a notícia, seu argumento seria de que um avatar turbinado por IA custaria 50 vezes menos que um médico humano e obteria “o mesmo resultado”. Além disso, como sabemos que ocorre com todas essas tecnologias de IA, o conteúdo técnico apresentado pelo avatar poderia facilmente ser ajustado para se adequar melhor aos interesses de quem realmente comanda a pasta da saúde estadunidense (no caso, Big Pharma, Big Tech e Big Money).
A medicina tem sido extremamente complacente com várias tecnologias de gosto duvidoso que têm se intrometido na relação médico-paciente, desumanizando-a. E com isso perdem tanto os médicos quanto os pacientes. Abrimos mão da cautela que deveria permear todas as decisões na área da saúde em prol da neomania e do avanço tecnológico a qualquer custo. Deixamos de escutar aquelas vozes ponderadas que nos tentavam alertar de que nem toda evolução é exatamente um progresso na direção de uma medicina – e de uma vida – melhor. Trocamos o bom senso e os ensinamentos de antigos filósofos, sociólogos, antropólogos e de outros sábios dentro da própria medicina pela corrida do ouro desvairada representada por startups gananciosas do Vale do Silício. É claro que isso não pode acabar bem.
Para fazermos um pouco de justiça, é preciso reconhecer que a medicina é apenas mais uma das áreas da sociedade em que as novas tecnologias estão sendo implantadas de maneira apressada e sem qualquer preocupação aparente com aspectos éticos e humanos de longo prazo. A verdade é que a sociedade como um todo está à beira da desumanização total. É simbólico que aqui em Porto Alegre tenhamos passado em menos de 20 anos da era do Fórum Social Mundial para esta nova era do South Summit. Trocamos as ideias de pensadores humanistas como Chomsky e Galeano pelos gananciosos discípulos de Musk e Zuckerberg e por um robozinho besta que recentemente dava as boas-vindas aos que chegavam ao curioso evento que acontecia na recém-alagada orla do Guaíba. Seria esse o “novo mundo possível” com que sonhávamos nas primeiras edições do FSM? Francamente, espero que não.
Em todo caso, tudo isso simboliza que abandonamos aqueles ideais humanistas do passado e passamos a apostar todas as nossas fichas na tecnologia para a solução de nossos problemas e a salvação da humanidade. Não temos médicos que desejem atuar em áreas remotas? Vamos simular consultas clínicas com avatares e hologramas inumanos. Não conseguimos preparar adequadamente nossos futuros médicos? Vamos terceirizar gradualmente a atividade médica para as máquinas estúpidas movidas por uma (in)certa “inteligência” artificial. Não temos soluções humanas para os problemas da humanidade? Chamemos os investidores sedentos e vamos, ao menos, ganhar uns bons trocados.
É mesmo irônico que a nossa atual aposta na inovação tecnológica a qualquer custo para criar um outro novo mundo possível – a tal “Cúpula do Sul” – ocorra na região da cidade mais destruída pelas forças da natureza exatamente pela falta de visão de longo prazo de nossos governantes (e de todos nós que os colocamos lá). É exatamente essa nossa miopia existencial que nos impede de ver que a desumanização atual da medicina e de toda a sociedade representadas pela substituição gradual e inexorável de homens de carne e osso pela frieza das máquinas não pode resultar em um mundo aprazível para os seres humanos atuais e de um futuro cada vez mais incerto.
O mesmo Konrad Lorenz citava entre os pecados capitais da humanidade a morte do calor humano e a competição destrutiva entre as pessoas, coisas ainda mais importantes hoje do que na época em que o autor as descreveu. Isso porque a frieza e a competitividade nas relações humanas aumentaram loucamente desde então. Se é verdade que os discípulos de Chomsky e Galeano não conseguiram nos guiar até aquele sonhado “outro mundo possível”, pelo menos, naquela época, ainda havia alguma esperança em nossos corações e mentes.
André Islabão é médico, integrante do movimento Slow Medicine Brasil e autor dos livros Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bem, O risco de cair é voar e Entre a estatística e a medicina da alma – Ensaios não controlados do Dr. Pirro.