Opinião
No Brasil, a segurança alimentar é um direito constitucional implícito na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição) e nos objetivos fundamentais da República (artigo 3º, III, da Constituição). Contudo, o desperdício intencional de alimentos para manipulação de preços se apresenta como um ato que fere de morte esses princípios.
Instituto Cidade Amiga

Enquanto o país é um dos maiores produtores agrícolas do mundo, cerca de 8 milhões de brasileiros (3,9% da população) enfrentam a fome, sendo que só em São Paulo aproximadamente 12% dos moradores vivem em domicílios onde a falta de recursos financeiros leva à eliminação de refeições diárias. [1]
Em novembro de 2024, durante a cúpula do G20, no Rio de Janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, com o apoio unânime dos membros do G20 e de 82 outros países. Essa iniciativa visa erradicar a fome mundial, um problema persistente que afetava mais de 9% da população global em 2023. [2]
Diante desse cenário, é importantíssimo analisar práticas que agravam a insegurança alimentar, como o desperdício intencional de alimentos por produtores agrícolas.
Problema do desperdício
O Brasil enfrenta um paradoxo alarmante: enquanto milhões de cidadãos sofrem com a insegurança alimentar, uma parcela significativa da produção agrícola é desperdiçada.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que aproximadamente 30% dos alimentos produzidos no país são perdidos ao longo da cadeia produtiva, totalizando cerca de 46 milhões de toneladas anuais. [3]
Esse desperdício acarreta uma perda econômica estimada em R$ 61,3 bilhões por ano. [4]
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Paralelamente, a insegurança alimentar ainda persiste em diversas regiões. Embora tenha havido uma redução significativa na insegurança alimentar severa — de 8% para 1,2% da população entre 2022 e 2023, conforme dados da ONU —, [5]milhões de brasileiros ainda enfrentam dificuldades no acesso regular e adequado à alimentação.
Em 2023, 27,6% dos domicílios brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar, segundo o IBGE. [6]
Nesse contexto, é fundamental examinar as práticas que intensificam o desperdício de alimentos, especialmente quando ocorre de forma deliberada por parte de produtores, para fins escusos e nada republicanos.
Direito de propriedade, função social e princípio da fraternidade
O direito de propriedade não é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro, devendo atender à função social (artigo 5º, XXIII, da Constituição). O desperdício intencional de alimentos, quando praticado para especulação financeira, desvirtua essa função social, especialmente considerando o artigo 170, III, da Constituição, que impõe a função social da propriedade como princípio da ordem econômica.
No contexto agrícola, isso implica que a produção deve ser orientada para o bem-estar coletivo, contribuindo para a segurança alimentar e nutricional da população.
O princípio da fraternidade, embora não explicitamente mencionado no texto constitucional, está implícito nos objetivos fundamentais da República, conforme o artigo 3º, que busca construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando a pobreza e a marginalização.
No contexto em debate, é possível verificar que a prática de desperdício voluntário de alimentos para além de ser uma atitude cruel, fere a solidariedade social e o compromisso coletivo de assegurar o direito à alimentação adequada.
Assim, o uso de propriedades agrícolas para fins que contrariam o bem-estar coletivo, como o desperdício proposital de alimentos, configura uma violação da própria Constituição e deve ser severamente punido.
Nesse toar, o artigo 186 da Constituição define os requisitos para que a propriedade rural cumpra sua função social, incluindo a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente, bem como a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Portanto, ao considerar o princípio da fraternidade e a função social da propriedade, práticas de desperdício intencional de alimentos podem ser juridicamente questionadas, abrindo espaço para medidas legais que visem coibir tais ações e promover a justiça social.
Princípios da ordem econômica e alimentar
A ordem econômica brasileira tem como fundamento a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, devendo assegurar a todos uma existência digna (artigo 170, Constituição). Ressalta-se, nesse sentido, que o desperdício intencional de alimentos fere diretamente o princípio da defesa do consumidor (artigo 170, V, Constituição) e o direito à alimentação adequada, previsto no artigo 6º da Constituição.
O ordenamento jurídico brasileiro já reconhece que certos bens, ainda que localizados em propriedade privada, não pertencem exclusivamente ao dono da terra. O exemplo mais claro é o dos recursos minerais, como petróleo e pedras preciosas, cuja exploração está sujeita a regulamentação estatal.
O artigo 176 da Constituição determina que os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica pertencem à União, cabendo a esta sua gestão e exploração, independentemente de quem seja o proprietário do solo. Isso se justifica porque tais bens possuem relevância coletiva e não podem ser apropriados unicamente por um particular sem contrapartidas ou controle.
Se bens como petróleo e minerais são considerados de interesse público, a ponto de sua propriedade não ser atribuída ao dono do terreno onde são encontrados, com mais razão os alimentos, cuja finalidade é a sobrevivência humana e a erradicação da fome, devem ser protegidos contra o desperdício intencional.
Enquanto o petróleo e os minerais têm valor econômico, patrimonial e estratégico, os alimentos possuem valor social e vital inegáveis, sendo essenciais para a vida e para a dignidade da pessoa humana.
Expropriação como medida sancionatória
No Brasil, o artigo 243 da Constituição permite a expropriação de terras onde forem cultivadas ilegalmente plantas psicotrópicas, sem qualquer indenização ao proprietário, em razão do dano social que essa atividade gera.
O desperdício deliberado de alimentos, quando realizado para manipulação de preços e manutenção artificial de escassez, tem impacto social negativo semelhante, pois priva pessoas vulneráveis de um bem essencial à vida.
Portanto, seguindo essa lógica constitucional, a expropriação de terras onde ocorra tal desperdício seria uma medida juridicamente viável e socialmente justificável. Além da expropriação, a criação de um imposto progressivo para penalizar práticas de desperdício agrícola intencional poderia ser um instrumento eficaz para desestimular tais condutas.
Propriedades rurais identificadas como responsáveis pelo descarte de grandes quantidades de alimentos sem justificativa razoável merecem sofrer sanções tributárias, de modo que a vantagem econômica buscada com a destruição de alimentos fosse revertida em ônus financeiro para seus responsáveis.
A prática de destruir alimentos para elevar preços revela-se como um ato lesivo à ordem econômica e ao direito à alimentação. Assim, perfeitamente viável a possibilidade de estender a lógica do artigo 243 da Constituição para permitir a expropriação de propriedades onde essa prática for comprovada, destinando-as à reforma agrária ou a programas sociais de segurança alimentar.
Imposto progressivo como instrumento de coibição
A progressividade tributária, por sua vez, é permitida pela Constituição (artigo 145, §1º), visando a uma tributação justa e proporcional à capacidade econômica.
A identificação inequívoca dos responsáveis pelo desperdício possibilitaria a aplicação de alíquotas progressivas de imposto, majorando a tributação de forma punitiva. Essa medida poderia incidir sobre o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) ou sobre o imposto de renda, conforme o impacto econômico e social da conduta.
A expropriação e o imposto progressivo devem, contudo, respeitar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, sendo aplicados apenas em casos de clara intenção especulativa e impacto direto na insegurança alimentar.
É fundamental, pois, que as medidas sejam precedidas de amplo contraditório e direito de defesa, garantindo a legitimidade do processo administrativo ou judicial que determinará as sanções.
Conclusão
Diante da crise alimentar e da vulnerabilidade social no Brasil, o desperdício intencional de alimentos para manipulação de preços não pode ser tolerado sob o manto da liberdade econômica ou do direito ao livre exercício da propriedade privada.
A aplicação de medidas severas, como a expropriação de propriedades e a tributação progressiva, encontra amparo na função social da propriedade e nos princípios da ordem econômica e social, devendo ser incorporadas ao ordenamento jurídico como instrumentos eficazes de justiça social.
[1] Disponível em: https://elpais.com/america/2024-11-17/la-lucha-contra-el-hambre-una-guerra-que-brasil-quiere-globalizar.html?utm_source=chatgpt.com Consulta em 5/3/2025.
[2] Disponível em:
[3] Disponível em . Consulta em 5/3/2025.
[4] Disponível em . Consulta em 5/3/2025.
[5] Disponível em: . Consulta em 5/3/2025.
[6] Disponível em: . Consulta em 5/3/2025.