A primeira reunião da Comissão Especial criada pelo Supremo Tribunal Federal para discutir o marco temporal – tese na qual os povos indígenas teriam direito apenas a terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988 -, foi realizada nesta semana e marcada pelas manifestações de representantes dos povos indígenas contrários à tentativa de um acordo para pacificar o campo.
A comissão é integrada por 24 representantes titulares, que participam dos debates e podem apresentar propostas sobre o tema e participar de votações e discussões de consenso durante as audiências. Os ocupantes das vagas foram definidos sem interferência do STF e podem ser substituídos a critério da entidade a cada audiência, sendo eles representantes da Câmara dos Deputados (3 vagas), Senado Federal (3), Advocacia-Geral da União (1), Ministério da Justiça (1), Ministério dos Povos Originários (1), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (1), Fórum de Governadores (1), Colégio Nacional de Procuradores de Estado (1), Confederação Nacional dos Municípios e Frente Nacional dos Prefeitos (1 vaga, indicada conjuntamente), autores das ações discutidas no STF (5 vagas), e da Articulação dos Povos Indígenas (6). Também participam, apenas como observadores, um representante da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Nacional de Justiça, da OAB e um membro de cada entidade admitida como terceiros interessados. Este grupo poderá participar das audiências, mas sem apresentar propostas.
O representante jurídico da Federação da Agricultura de Mato Grosso do Sul (Famasul), o advogado Gustavo Passarelli integra a Comissão. Nossa reportagem conversou com ele, logo que retornou de Brasília para compreender os bastidores desse debate.
Como estava o clima e os ânimos dos participantes?
Gustavo Passarelli Eu confesso que tinha uma expectativa um pouco melhor com o ambiente conciliatório previsto para essa reunião. Na minha opinião, as entidades que apoiam os indígenas e as próprias comunidades indígenas que se fizeram presentes manifestaram resistência com relação à continuidade dos trabalhos da comissão. Um exemplo para demontrar isso é que nós tínhamos várias reuniões marcadas até o dia 18 de dezembro, que era o prazo inicial que o ministro Gilmar Mendes concedeu para que se alcançasse um resultado. Teríamos reuniões todas as segundas-feiras, e isso já mudou, porque a próxima ficou para o dia 28, e as comunidades indígenas tiveram um prazo para se manifestar no sentido de se vão continuar ou não nessa mesa de discussão.
Houve alguma deliberação nessa primeira reunião?
Gustavo Passarelli Ainda não. Essa primeira reunião foi mais no sentido de fazer uma apresentação daquilo que será realizado, do que será discutido e da atuação das partes. Houve abertura de tempo para que todos pudessem se manifestar e expor as suas condições e, como são muitas pessoas e o ambiente estava um pouco tenso, então foi gasto muito tempo e não se conseguiu deliberar nem sobre as futuras datas.
Por que o Supremo precisa intervir nessa questão que já foi definida em lei?
Gustavo Passarelli Os textos legais, de um modo geral, não só a Constituição Federal, mas os Códigos Civil e de Processo Civil, eles tendem a não ser objetivos, eles tendem a ser subjetivos e, propositalmente, assim se faz porque as relações na sociedade mudam ao longo do tempo, os costumes mudam, os modos de se fazer negócio mudam. E se você coloca uma redação muito objetiva para determinado momento da sociedade, no futuro ela pode se tornar obsoleto, demandar uma nova legislação. Então, especialmente nas constituições federais, os textos tendem a ser mais genéricos. Por isso, quando se trata desse tema, no artigo 231 da Constituição Federal, não diz necessariamente que os indígenas terão direito à posse somente naquelas terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988. O marco temporal é fruto de uma interpretação constitucional. E, além disso, o próprio texto da lei diz que as terras indígenas são aquelas que os índios ocupam. Veja que o verbo está no presente. Aí, é a interpretação. Mas não é objetiva.
Por que não se respeita as decisões do Congresso Nacional, que tem o poder de legislar?
Gustavo Passarelli Existem duas questões bem complexas. A primeira delas é que quando a Lei do Marco Temporal foi publicada, dentre outras atribuições com relação ao processo de demarcação, não podemos esquecer que pouco tempo antes, o Supremo havia proferido um julgamento em que vários artigos desta nova lei estariam incompatíveis com o entendimento do Supremo. Lembrando que o entendimento do Supremo é a interpretação da Constituição Federal, que é uma lei maior do que essa lei que foi publicada. Então, em termos de estrutura jurídica, a Constituição Federal fica num nível maior. Mas também de outro lado e é importante mencionar isso, o Congresso é a voz do povo. Eles são responsáveis não só por legislar, como também por exteriorizar a vontade dos seus mandatários, que são os seus eleitores. E, na medida em que o Congresso elege promulgar uma lei regulamentando o tema, é de se entender que deve prevalecer a vontade do Congresso. Por isso, é importante dizer que hoje em dia existe até uma PEC em andamento no Congresso com o objetivo de alterar o artigo 231 da Constituição Federal para regulamentar o Marco Temporal de forma mais objetiva, como se fez na lei 14.701/23.
Nós temos várias áreas de conflito em MS, principalmente em Douradina. O senhor acha que pode haver alguma deliberação do STF antes de dezembro para garantir a paz no campo?
Gustavo Passarelli A situação é realmente muito preocupante. Nós temos em Mato Grosso do Sul mais de 115 propriedades invadidas, algumas delas com 10 anos, algumas delas com até 30 anos de invasão, sem que liminares de reintegração de posse sejam cumpridas. É uma preocupação que nós manifestamos na reunião, no sentido de que o Supremo precisa dar uma resposta de pacificação. No nosso entendimento, a pacificação começa na medida em que as invasões cessarem. Porque na medida em que eu tenho invasões sendo realizadas, liminares sendo descumpridas, tem produtores que muitas vezes se veem em situação de completo desespero, como é o caso desses mesmos produtores de Douradina, são pessoas que se utilizam das áreas para sua própria subsistência. Pretendo levar esse tema a discussão nas próximas reuniões do Supremo, porque eu acho que essa é uma sinalização que precisa ser dada pelos dois lados.
Existe algum caso na América Latina ou no mundo semelhante à essa situação e que tenha encontrado uma saída?
Gustavo Passarelli Até onde eu tenho conhecimento o Brasil está sendo ineditista nessa medida. Nós temos algumas soluções, por exemplo no Canadá em que foram adquiridas terras. No Brasil existe a questão da área de ocupação tradicional. No Canadá, e em alguns outros países europeus, as soluções foram no sentido de aquisição de área em outro local. Como mais ou menos é o caso do Parque Nacional do Xingu, que foi criado pelo Estado para a remoção dos indígenas no Mato Grosso, com o objetivo de pacificação justamente das comunidades que estavam em guerra entre eles. Essa solução, que nós estamos trabalhando agora de indenizar produtor rural, é inédita ao meu conhecimento.