Imparcialidade dos julgadores nos tribunais administrativos tributários


Processo Tributário

O princípio da separação dos poderes (artigo 2º da Constituição) que subdivide a função estatal numa relação tripartite (Executivo, Legislativo e Judiciário) não é estático, seu exercício compõe tanto funções típicas como atípicas. É neste sentir que foram criados os tribunais administrativos, no âmbito do Poder Executivo, com o fito de materializar, de forma atípica, a função jurisdicional, sem, contudo, excluir o acesso ao Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV da Constituição Federal), que a exerce de forma típica, solucionando os conflitos de interesse de maneira peremptória e definitiva [1].

Em que pese os tribunais administrativos tenham surgido a partir de 1891 [2], tais órgãos ainda são alvos de questionamentos, especialmente, no tocante à imparcialidade. Isso porque, em regra, tais tribunais possuem composição paritária (metade integrada por representantes do próprio poder público e a outra metade por representantes dos contribuintes), escolhidos e nomeados, livremente, para exercer a função por um prazo certo, permitida ou não a recondução.

Nesses moldes, entre tantos outros, estão o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP). Exceção ao modelo paritário é verificada no Tribunal Administrativo Tributário do estado de Pernambuco (Tate) — Lei nº 10.654/1991 —, cujos julgadores ingressam por meio de concurso público (artigo 247 da Constituição do estado de Pernambuco e artigo 4º da Lei nº 15.683/2015) e gozam de garantias semelhantes aos magistrados, como a estabilidade [3].

Ingresso e imparcialidade

Aqui, reside questão merecedora de melhor análise e objeto nuclear do presente artigo: a forma de ingresso na composição de um Tribunal Administrativo Tributário interfere na garantia da imparcialidade no julgamento?

Ponto de crucial compreensão é diferenciar a imparcialidade pessoal (aqui entendida na concepção de valoração humana) da imparcialidade jurídica (aqui entendida na concepção de garantia processual): a primeira diz respeito ao ato de tomar decisão de forma neutra, buscando se despir de todo núcleo de preferência valorativo, já a segunda refere-se a uma atuação com autonomia/independência [4] e de forma equidistante em relação ao processo e às partes.

Com efeito, o ser humano é cultural, impregnado de valores, que são a determinação particular do ser – um modus essendi [5], portanto, o alcance da neutralidade é utópico diante de qualquer situação, pois somos, por excelência, um depósito de valores de tudo que já nos tocou ou nos circunda de forma mais próxima.

É certo que as experiências vivenciadas e acumuladas ao longo da vida influenciam na decisão de cada julgador – “princípio da experiência em matéria probatória” [6]. Portanto, não há como um julgador ser neutro. Assim, o que encontramos, em qualquer âmbito de julgamento, é o exercício da atividade de aplicação normativa por um ser humano e seu contexto.

Por essa razão, em nosso sentir o holofote não deve estar focado na questão da neutralidade, mas sim na garantia da imparcialidade jurídica (processual), a qual está prevista, inclusive, em tratados internacionais (vide artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e artigo 8º do Pacto de San José da Costa Rica).

Bases legais e princípios

Para materializar tal preceito, de forma a assegurar um julgamento justo, o sistema jurídico brasileiro atribuiu a ideia de imparcialidade ao julgador equidistante, condição essa que “reclama a existência de normas jurídicas que o estabeleçam e instrumentalizem” [7] como condicionantes. Para tanto, fixou alguns parâmetros (requisitos), implementando regras de impedimento e suspeição (artigos 144 e 145 do CPC/2015).

Analisando o regramento dos órgãos do contencioso administrativo tributário, identificamos enunciados voltados à garantia da imparcialidade nos seus julgamentos sob os pilares de impedimento e suspensão. Nesse contexto, destacamos a título exemplificativo as seguintes bases legais a) Regimento Interno do Carf (artigo 42) e a Portaria do Ministério da Fazenda nº 20, de 17 de fevereiro de 2023 (artigo 17); e b) no âmbito estadual, como nos casos do TIT-SP (artigo 31 da Lei 13.457/2009) e do Tate-PE (artigos 18 e 20 da Lei 11.781/2000).

Com razão, ao julgador administrativo tributário, independente da forma de ingresso (nomeação ou concurso público) nos quadros da administração pública, enquanto responsável pelo controle da legalidade dos atos administrativos, cabe, ainda, observar os princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37 da CF), assim como assegurar o devido processo legal e seus corolários (artigo 5º, XXXIV, alínea “a”, XXXV, LIV e LV da CF), enunciados que atuam como garantidores do exercício da atividade de julgamento de maneira imparcial (imparcialidade jurídica).

A ideia do concurso como garantia

Não obstante, mesmo com tantas normas parametrizadoras da imparcialidade, há uma percepção, em nosso sentir, de que essa garantia estaria refletida com maior eficiência nos tribunais administrativos cujo ingresso dar-se-ia mediante concurso público, a exemplo do Tate-PE.

Tal raciocínio não subsiste a uma análise mais detida, pois é imperiosa a diferenciação entre funções típicas e atípicas, bem como o fato de no contencioso judicial, os juízes também serem remunerados pelo próprio Estado. Atrelar a imparcialidade à forma de ingresso do julgador não nos parece ser o melhor caminho.

Os comandos de imparcialidade estão presentes no estabelecimento das regras que demarcam o ato de julgar, pois “o ato de decidir em qualquer de seus âmbitos, judicial ou administrativo, permite apenas a defesa de um único interesse: público. E isso independe do tom da tinta – da categorização pertencente ao julgador, representante do contribuinte ou do fisco” [8].

É importante ter isso em mente, pois o cenário atual é de mudança e uma perspectiva de uniformização do contencioso administrativo tributário. Independentemente do modelo que venha a ser adotado, o que não pode se perder de vista são os requisitos assecuratórios da imparcialidade jurídica como garantia processual já previstos em nosso ordenamento, não significando que a lei não possa fixar outros de forma suplementar.

Porto seguro

Ainda que se admita que toda decisão, seja judicial ou administrativa, não escapa a um quantum de valoração, esse fator em nada obsta o dever de imparcialidade ou compromete a equidistância do julgador. Pelo contrário! A formação paritária dos tribunais administrativos, independentemente da forma de ingresso, permitem uma rica troca das experiências de formação profissional, colocando na mesa de julgamento origens diferentes, o que não implica em necessária adoção de tendência para manutenção ou cancelamento do lançamento fiscal.

Enfim, não há julgador neutro, inexiste atividade humana isenta da faceta axiológica, mas a imparcialidade jurídica garantida institucionalmente é um porto seguro para a justiça nas soluções dos conflitos entre fisco e contribuinte em ambiente administrativo.

 


[1]    CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 7 ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 954.

[2]   https://www.sefaz.pe.gov.br/Institucional/Secretaria/Paginas/Historia-da-Sefaz.aspx. Acesso em: 10.07.24.

[3] A respeito remetemos o leitor ou leitora para o seguinte artigo:

https://www.conjur.com.br/2022-jul-24/processo-tributario-imparcialidade-julgador-administrativo-tributario/

[4]    CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 7 ed. São Paulo: Noeses, 2018, p. 970.

[5]   HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. São Paulo: Almedina, 2001, p. 5.

[6]   TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário: de acordo com o código de processo civil de 2015. 4ª ed., rev. e atual. São Paulo: Noeses, 2016. p. 317.

[7]   https://www.conjur.com.br/2022-jul-24/processo-tributario-imparcialidade-julgador-administrativo-tributario

[8]   TELES, Galderise Fernandes e FERNANDES, Pablo. Voto de qualidade para além do preconceito decisório. XVIII Congresso Nacional de Estudos Tributários. Coordenação: Priscila Souza e Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, 2021. p. 687.



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